CONTO - UTILIDADE

UTILIDADE             A frieza absoluta nunca o impedia de estar presente em vários lugares, especialmente nos mais íntimos. Toda aquela severidade e seu jeito obscuro de ser destacavam-se nos insistentes silêncios e, talvez, exatamente por isso, todos sem exceção, lhes confiavam os mais íntimos segredos, expondo-se sem constrangimento diante dele, como a desafiá-lo a ter uma vida, uma vida viva.

            Por vezes sua aparência lembrava restos de outras coisas, de outros momentos, de outras pessoas. Tantas formas podia assumir que quase nunca o definiam por sua expressão, apenas por sua presença ou ausência. Sempre um tanto sisudo, em sua arrogância de sabe-tudo, quase chantagista perante o que lhe caía de graça, podia ser dono do mundo se lhe apetece apenas falar.

            Não revelava sentimentos especiais ou algum apego específico, mas se mostrava útil para as senhoras mais vulneráveis que passavam muito tempo ao seu redor, solitárias e adoecidas por suas tristezas sem fim. Junto dessas existia em sua função de apoio, de socorro, guardando suas coisas particulares, atento às suas falas de abandono, segurando seus copinhos de licor ou suas xícaras de chá com alguma cerimônia, alimentando uma dependência quase obscena que lhe permitia considerar-se indispensável.

            Nunca fora muito de animais de qualquer espécie, todas as suas experiências com esse tipo de ser, lhe renderam arranhões, manchas e profundo desagrado. Tratava-se de um ente feito de arestas afiadas e sabia como utilizá-las para afastar o indesejável. Tinha uma perfeita noção de qual era o seu lugar no mundo e fazia bom uso dele – observando, arquivando, catalogando e organizando objetos, impressões e informações concretas e talvez também as abstratas.

            Não gostava dos dias por causa do sol que parecia lhe inchar as articulações, fazendo-o sentir-se um tanto bovino. Não gostava das noites porque sempre acabava do lado da cama de alguma alma necessitada - sua inabilidade emocional o tornava facilmente aborrecido. Enjoava das pessoas, enjoava dos ambientes, enjoava dos meses e estações do ano, tudo ia tornando-se igualmente entediante conforme as rotinas se escoavam. Sabia-se egoísta e vazio, mas de algum modo interessante. Sem coração ou afetos, mas profundamente prático. Em geral sem uma beleza significativa, mas em certos círculos e por certos motivos, admirável! Então ia ficando ali, tempos após tempos, em sua tarefa taciturna e inquestionável, iludido pela imobilidade de sua suposta importância.

            Toda fantasia de controle acabou no dia em ela chegou.

            Ela ocupava com a luz do seu sorriso e seu perfume antigo, cada centímetro do ambiente. Seu humor - nem doce nem cítrico - preencheria seus dias e tudo que lhe acontecesse a partir daquele momento. Irreverente, ela lançou sobre ele seu lenço transparente e ele incomodado com tamanha energia, sentiu-se pego por um vendaval de primavera ou um carrossel de cores açucaradas. Nada nunca mais pareceu igual.

            Aquela alteração brusca de sintonia o irritou muito, atarantado e agressivo acertou-lhe o mindinho do pé e esperou o grito, surpreendendo-se com a gargalhada alta que o colocou num desespero contido, recalcado, aturdido. Imobilizado pela surpresa e pela própria condição, apenas obscureceu-se mais em seu canto predileto e esperou enquanto ela o ignorava solenemente, andando por todo lado com sua leveza de fada, com seus passos cadentes de bailarina. Nunca antes conhecera um pescoço como aquele e em ganas de assassino, sonhava torcê-lo, mordê-lo, oferecê-lo aos deuses em sacrifício. Não trairia, porém, sua tez plácida nem mesmo pela mulher mais linda do mundo e toda aquela sua exagerada felicidade.

            Os dias passavam e quanto mais ela pairava por ali, mais ele sentia-se oprimido, quanto mais a vida dela era vivida, com suas cores e sua sépia, com suas alegrias e tormentos, mais peso ele se via carregando sobre si. Sendo assim, a idade, antes plenamente ignorada, passou a pesar-lhe os pés e com ela uma melancolia própria dos que sabem que meia vida não é melhor do que nenhuma.

            Uma hora ela olhou para ele com outros olhos, olhos de borboleta travessa em tarde quente e se empenhou a mudá-lo, mudá-lo tanto que o ofendeu, ao final sentiu-se meio mulher e se, por um lado, isso o aquecia, por outro o fragilizava. Aquelas coisas escorrendo sobre ele e secando, todos aqueles cheiros, novas temperaturas e novos sabores, o confundiam demais, exasperavam, feriam sem, contudo, causar-lhe o ímpeto necessário para apenas recusar-se.

            Quando o tormento acabou, o outro surgiu entre afoito e misterioso. Magro em sua altura, mas quase belo com seus cabelos mal cortados. Olhou para ele apenas uma vez, seu sorriso irônico lhe pareceu de pena, nada comentou. Inerte como um morto, observou-a entrar e lançar-se nos braços do forasteiro e a forma como ele tocava nela a noite inteira, evidenciou mais do que denunciou, toda a impossibilidade que cercava suas próprias relações. Tudo fora feito para o outro, aquele outro cujas mãos passeavam com desenvoltura pelas formas que ele cultuava todo dia, aquele outro que beijava ora com suavidade, ora com furor, tudo o que ele insone, velava todas as noites, aquele que esbarrava nele os pés grandes toda vez que ia, toda vez que ia...

            Quando enfim descansaram, ele recebeu sobre si um bule quente que feria um pouco sua recém-pintada superfície, também havia pratinhos com guloseimas e pode vê-la abrindo seu lindo sorriso até um pouco depois dos olhos para agradecer o que o outro lhe servia com aparente amabilidade. Estudou a expressão dela cuidadosamente, as faces rosadas e brilhantes de pura languidez, os cabelos soltos em liberdade e desalinho, toda aquela beleza sem esforço que lhe revelava o rosto cheio de uma nova luz, seus olhos transmitindo uma meiguice pueril, denunciava aquilo que outrora ele apelidara de estranha estupidez feminina. Já conhecia aquele olhar de tantas outras vezes, apenas não lhe levara a sério, não o deixara tocá-lo, não assim, não como ela.

            Sentiu suas estruturas cedendo um pouco, o peso dos anos não se compara ao dos sentimentos. Sabia pela experiência alheia, ingerida por sua atuação de voyer absoluto, que plantar expectativas, em geral, se traduzia em colher decepções. Calou-se ainda mais calado do que sempre fora, se isso acaso fosse possível, enrijeceu as pernas curtas e grossas, segurou-se como pode e coisificou-se de vez, por pura preservação, embora mal pudesse compreender do que pretendia se proteger. Pensou por último se ela repararia, se em algum momento se daria conta, se o notaria, se ao menos sentiria falta da forma como ele a acompanhava em lealdade absoluta.

            Ao final viu-se arrastado, repartido, depredado. Feito em partes. Abandonado num terreno baldio qualquer. Apodrecendo chuva após chuva. Sem mais nenhuma utilidade.


Danielli Morelli




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Danielli Morelli

É Doutoranda em Letras e Literatura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Possui Mestrado em Letras e Literatura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Possui Graduação em Letras (Português e Inglês) pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2015). Possui Graduação em Psicologia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2001). Tem experiência como professora na área de Letras, com ênfase em Literatura. Tem experiência como Psicoterapeuta na área de Psicologia Clínica.