CONTO - PROPICIATÓRIO
 
O início era como sair de um túnel, do útero materno, de um viaduto mental, de uma caverna. Abri os olhos sem perder a escuridão e o calor denso ocupava cada centímetro do espaço que eu mais intuía do que percebia. No ar seco o cheiro de podridão, morte e excrementos se imiscuíam num perfume acre insuportável. Um líquido grasso e morno escorria pelo meu rosto, sangue e suor fundidos numa mistura grudenta. Ao mover um dos braços veio uma letargia e um cansaço acrisolado de quem morreu sem saber. Depois de um tempo ou dois, meu corpo alertado sentiu o cubículo onde jazia em total desajeito e abandono. Meus pulmões ressentiam-se da ausência de um ar respirável, não havia liberdade e o primeiro ímpeto foi o de racioná-lo, medo de que acabasse, desespero de extremos.
 
A noção de tempo vaga só me permitia notar o retorno paulatino nos sentidos, cada qual logrando a aparecer, um a um, exceto a visão. Parecia possível o efeito de alguma droga forte, alternativa razoável à ideia de que meu estado físico e mental fosse terminal. Com uma das mãos toquei meu corpo e estremeci tanto pela dor lancinante quanto pela constatação de uma nudez crua e inconveniente. Paralisada por um medo primal não me furtei da questão óbvia: Viva e prisioneira, de quem?
 
Com a presteza da mãe boa coloquei-me a conferir o corpo na busca de alguma ausência importante, descobri com uma alegria infantil que não perdera um só dente. Movi os dedos da mão cuidadosamente, embora dormentes, os pés pareciam lá. Numa tentativa calamitosa de alargar meus movimentos algo ao meu lado assustou-se e gemeu, seguindo nesse lamento gutural por muito tempo, alucinações? Por aquele instante apenas de sons e movimentos, sem poder tocá-lo ou vê-lo, minha loucura se expandia em angústias e agonias, monstros, fantasmas e fantasias. A dor ia e voltava espasmodicamente dando-me curtos espaços de tempo para perceber e pensar no que se passava naquele lugar execrável.
 
Outra vez sufocada por uma lufada de ar sujo, tornou-se inevitável inspirar com força, o sofrimento teria me feito cair sobre as pernas se já não estivesse no chão, duas ou três costelas quebradas no mínimo. O vulto soltava sílabas sem nexo num delírio dissonante, devia ter febre!
 
Mais tarde a fome chegou como ladrão na noite e estraçalhou meu estômago. A dor, antes uníssona, agora se fragmentava nas mil notas retumbantes de um caos pós-explosão, seus estilhaços me calavam por completo em respeito por um adversário obviamente superior. O parceiro de cela seguia em sua cantilena funesta e a irritação somou-se ao mal estar físico fazendo um desejo pleno de encerramento apossar-se de cada célula do meu corpo.
 
Puxei a mente porque precisava saber: uma cena, uma voz, um nome, um lugar, qualquer coisa que me permitisse morrer sendo. Apenas um elefante branco gigante sentado em meu cérebro tamanha inibição de pensamento, inacreditável não ser capaz de sequer lembrar!
 
Dois séculos à frente e vagarosamente mudei de posição o suficiente para poder tocá-lo. A pele lisa sugeria um dorso, quente e úmido demais, tremeu ao contato e enrijeceu-se, relaxando em seguida ao notar que meu toque era delicado. Continuava mussitando algo completamente incompreensível e sem nenhum aviso aproximou-se. O terror era surrealista, espécie de medo integral, cheio, gelado, perpétuo. Todas as reações de autopreservação pareciam peças de ironia indômita.
 
O estranho aconchegou-se em meu ombro dolorido, afastei-me para em seguida ajeitá-lo com pena. Há algo de solidário que é imanente em moribundos de mesma viagem! O hálito quente junto ao pescoço trouxe a imagem nítida de ambos morrendo naquele buraco escroto, sangrando e gemendo como porcos no matadouro, ovelhas de sacrifício. Deixei-o perto porque tão próxima do fim da linha não tive coragem de ficar sozinha.
 
Num átimo de ânimo, fixei os olhos num ponto qualquer na tentativa de me adaptar ao breu, mas tudo foi em vão, passei a dar como certa minha cegueira. Num minuto específico em que o ar tornou-se tão rarefeito assim, como qualquer esperança, passei a lutar fisicamente contra o pânico que me engolfava. Primeiro foi o estômago embrulhado, algo teimava em sair pela garganta e se não fosse a inanição poderia vomitar, depois foi uma taquicardia e todo corpo tiritando no descompasso do coração, minhas mãos suavam, a boca de tão ressequida fazia sua mucosa arder, por muito tempo os sintomas pioravam e melhoravam numa escala de graduação ensandecida e pensei que era chegada a hora, então tudo paralisou num estalo e voltei para o negror da mente.
 
Despertei enregelada, um filete de água gelada escoava por baixo de nós, meu companheiro de cela, deitado com a cabeça em meu abdômen, abandonava-se ao toque sem qualquer relutância. Tal friagem certamente o mataria e a ideia de tê-lo morto passou a me assombrar, não tanto por ele, que eu não tinha ideia de quem fosse, mas pela perspectiva bizarra de passar meus últimos momentos com o que seria um cadáver!
 
Os olhos melhoravam. A noite ainda imperava, mas já havia formas distintas e sombras esparsas. O homem comigo era grande e embora não mais gemesse ou delirasse, ainda vivia e respirava de forma tensa e visível mesmo no escuro. A cela devia ter uns dois metros quadrados, estávamos praticamente nus com exceção de uns farrapos de tecidos rasgados que mal cobriam nosso sexo. O corpo me doía menos, mas a fome era brutal, controlava em desespero a ânsia por comer os restos de roupas que disfarçavam em vão nossa indigência total. Em desvario cheguei a lamber a água imunda que esticava dedos delicados pelas paredes. O teto estendia-se muito acima de nós, mas uma grade, metro e meio acima, limitava qualquer movimento.
 
Encostei os dedos no rosto do homem e ele reagiu muito pouco, tinha um grande ferimento na têmpora esquerda e depois notei mais um, no ombro direito logo abaixo da clavícula, ainda sangrava um pouco, mas não parecia tão grave na falta de luz. O cabelo era liso e grosso, quando o toquei ergueu sua mão direita e segurou minha perna com uma força desproporcional, delicadamente pousei minha mão sobre a dele na tentativa de que cedesse, pois me doía e o homem segurou a mão que eu sem querer lhe oferecia. Passamos um longo período assim juntos e em silencio, buscando uma segurança inexistente na simples constatação do outro.
 
Anos se passaram na percepção de uma mente esquiva, busquei fragmentos da minha vida, não consegui ordenar as imagens suscitadas, elas mantinham-se soltas como ilhas de um conhecimento que teimava em não integrar-se. Como um bebê pequeno, confinado a imagens e sensações do presente, lutava para conectá-las a representações mentais, ainda mudas quanto aos seus significados. Coisas estranhas me vinham, teóricas demais para instantes tão concretos de uma sobrevida, aspectos gramaticais e até musicais, palavras soltas e voadoras, explicações mecânicas sobre a existência de um Deus, lembrei do rosto de meu pai, mas não seu nome e não de minha mãe, sabia meu nome, mas não de onde vinha. Admiti por fim uma loucura evidente, pelo menos de um período de completa insanidade e desorientação.
 
Sons esparsos de fora da sala encerraram minha jornada onírica num tom surdo, muito distantes davam a impressão de confinamento em um túmulo, soterrada num cemitério qualquer, jogava aos corvos para morrer com um estranho. Como conter o pânico avassalador?
 
O frio absurdo sacolejava meu corpo tiritante e desassossegava o homem que dormia em minha barriga, meus dentes batiam violentamente e meus ossos doíam em mais uma gama de dores diferente das anteriores, simplesmente não me aquecia e perdia outra vez a capacidade de ver, nem mesmo a imagem próxima do homem era contemplável e as trevas se intensificavam na mesma proporção com que a temperatura caía. Madrugada maldita!
 
Fiz de tudo para desencostar da parede molhada, mas qualquer ação tinha o peso de uma manada de búfalos selvagens. Diante de mim vi nitidamente uma criança, um bebê de um ano talvez, não tinha cabelos, mas seus olhos de um azul profundo brilhavam como a estrela da manhã e sorria. Um filho talvez? E morto!
 
Meu útero retesou-se no corpo. Estaria grávida? Como?
 
Já conformada pela total ausência de sentido em cada detalhe daquela experiência vicária, de nada mais duvidava, e a certeza enlouquecida ou não de esperar uma criança invadiu-me por inteira e encheu-me de uma energia estranha. Não tinha a menor ideia de quem seria o pai ou de como tinha sido a concepção, achava em si apenas um vago e sóbrio sentimento de culpa. Teria cometido algum delito? Complicações pregressas parecem óbvias para quem desperta dentro de uma cela espúria, ferida e nua. Pela primeira vez a ira encheu-me o peito, raiva pela simples e total ignorância da vida, exceto pela verdade inaudita e biológica de esperar um filho.
 
Novamente a pessoa ao lado fez-se quieta demais, num limiar tão próximo a morte deixou de ser tão temida e passou a cortejar-me, percebi inclusive um anseio sutil. A perspectiva de gerar um filho de alguma violência sexual não me constrangeu, talvez porque tudo entra em outro viés no limiar e tudo o que se quer de fato é um vislumbre de vida, seja ela qual for.
 
O estranho voltou a falar num susto, como tudo o que fazia, balbuciava muitas coisas sem sentido e em uma de suas frases disse que Deus andava comigo. Gastei tempo naquilo, uma lucidez difusa preencheu minha mente e me perguntava: acredito em um Deus? Diante de tamanha provação devia-se voltar a Ele ou ignorá-lo? Coisas de antes me voltavam aos borrões, palavras da infância sobre um Deus pastor que apascentava suas ovelhas e não permitia que nada lhes faltasse. O que dizer dessa ovelha aprisionada numa gaiola infame, unida a um desconhecido, agredida, ofendida, nua em um frio medonho, ferida, faminta e grávida? Embora nada saísse de meus lábios, meu parceiro de mortalha falava sobre provações que produzem perseverança.
 
Outro surto se aproximava, a ansiedade aliou-se ao frio que convidou a fome e a mesma trouxe o desespero. Tremia e também suava, desse suor frio de doente, dores esparsas e profusas se confundiam num caleidoscópio sensorial. Passei a ouvi-lo cada vez mais distante e enfim sucumbi pedindo um milagre ao tal Deus que era também pastor: deixe-me viver para ter o filho do desconhecido!
 
Uma imagem nítida surgiu. Também de uma madrugada fria e agourenta como aquela, também havia um homem embora intuísse que não se tratava do mesmo, dentro de um automóvel ambos tremíamos apreensivos, a consciência do perigo iminente pairava no silêncio pesado entre nós. Havia uma entrega a ser feita, mercadoria contrabandeada, o sítio do encontro ficava a apenas umas centenas de metros de um posto policial, arriscado, porém imprescindível pois o ponto era estratégico para a distribuição em toda a região.
 
Ao aproximarmo-nos da porteira meu companheiro desligou o motor e empurramos lentamente o carro para um terreno baldio ao redor, chegando ao local combinado respiramos aliviados e esperamos o homem chamado Mielovich com seu ajudante para recepcionar as caixas. Até ali, tudo perfeito!
 
Um vulto aproximou-se e por seu andar trôpego reconhecemos nosso bom e idoso amigo que abraçou-nos em silêncio e beijou-me a testa, sempre com o olhar de pai pesaroso diante da escolha de vida que eu tinha feito. Aquele beijo era um presente e, por um instante, o suposto homem de Deus foi envolto por uma aura brilhante em meu sonho acordada e eu soube que ele tinha morrido, depois voltei à imagem-lembrança.
 
Todos nos dirigimos ao carro e passamos a descarregá-lo com avidez, embora velho tratava-se de um bom carro. Quase no fim, meu companheiro, ao retirar algumas caixas da cabine esbarrou na direção e acionou a buzina que bradou cortando o ar silente da noite como um relâmpago. Meus ouvidos amplificaram-se como se pudessem ouvir o tartamudeio de cada respiração animal num raio de muitos quilômetros, tudo fez-se barulho e o pavor nos acendeu uma chama incandescente no peito.
 
O estado de choque durou alguns segundos, inspirei fundo e fiz uma prece rápida, passei a retirar as caixas restantes com tal rapidez que esbarrar novamente na buzina só fez parecer ainda mais o azar excessivo para uma noite só!
 
A polícia chegou em poucos minutos, nada havia a ser feito, ainda permaneciam intactas no automóvel umas seis caixas, certamente seríamos presos. Estrangeira e clandestina no país, falante de um russo risível, não tinha boas relações em minha própria pátria e carregava no peito um crucifixo, por mero instinto me fiz de surda.
 
Um dos guardas, muito alto e branco, parecia tranquilo e inquiria o homem que viajava comigo com algum respeito, já o outro foi mais agressivo, puxou-me pelo casaco e olhou-me nos olhos como que desvelando a verdade através deles, ironicamente havia compaixão naqueles olhos verdes...Lembrei que já estivera em contato com a polícia ucraniana antes, todos pareciam educados, mas tinham olhares ferozes, este era de uma grosseria teatral e mantinha um olhar brando! Passou a gritar comigo algo que pouco entendi, só deixou de falar e esbravejar ao ser informado da suposta deficiência, meio incrédulo e ainda me olhando dirigiu-se até o carro passando a vistoriá-lo.
 
Tudo em mim permanecia inerte, olhos fixos nele, toda a razão da minha liberdade nas mãos daquele homem iracundo. Histórias ouvidas sobre campos de prisioneiros trouxeram um tremor sutil ao meu corpo e um fervor reverente à minha alma. No presente, eu vivia na pele tais histórias e pedi com toda força um milagre! Um milagre tal qual o que se dera naquela madrugada tantos anos atrás...
 
O policial retornou ressabiado e sem graça, desculpou-se especialmente com o velho, pegou o companheiro visivelmente contrariado e voltou para sua base deixando para trás um grupo completamente perplexo, haviam coisas demais jogadas displicentemente no banco de trás da cabine, qualquer criança pequena encontraria tudo, o fato era que ou o policial nada viu ou nada quis ver.
 
Eu sorria sem parar, tomada por uma energia subliminar que contagiou meus companheiros, abracei meu companheiro e depois entreguei a Mielovich, o sacerdote que vivia nas sombras, um último pacote, um presente especial, ele abriu e sorriu em conivência. Um pequeno livro escrito em russo, proibido pelas autoridades e que seria dado de presente para sua filha Olga.
 
- Agnes, que os milagres continuem acontecendo...
 
Jamais o veria outra vez, mesmo estando com algum transtorno de memória, recordava-me completamente de sua cultura abrangente, de sua inteligência, de seu modo bem humorado de tratar de assuntos tão espinhosos. Aquele homem magnífico estava morto!
 
A escuridão daquele propiciatório me enlouquecia, a angústia inútil descontrolava o curso de meus pensamentos, cansada demais me vi prestes a adormecer e quando um espasmo confrangeu meu ventre percebi que abortaria em pouco tempo, se é que havia uma criança ali. Real ou virtual, aquele sacrifício me pareceu caro demais!
 
Tornei-me um ser entre o animalesco e o sobrenatural, uma força onipotente emanava espontânea e gritei - mesmo em dor profunda, em fome absoluta, em frio mortal, em medo cortante do que poderia advir - gritei e esmurrei as paredes, despertei meu companheiro que passou a urrar em solidariedade, o barulho desnorteante parecia o rugido de um mundo, gritamos, berramos, chamamos, pedimos, suplicamos e choramos. Ao notar o desmaio do homem, ouvi também as primeiras vozes aproximando-se e senti com grande pesar um plasma quente escorrer entre as pernas.
 
Danielli Morelli