CONTO - O FAROL

“E as ondas que quebram são acalmadas pelas ondas que chegam,
E de novo outra chega e a abraça e sobre ela quebra, todas sempre tão próximas,
Mas meu amor, ele não se acalma.”

Walt Whitman – Corrente Marítima

            Era uma vez um farol, desses bastante comuns, mero sinalizador para embarcações no oceano. Situado em uma enseada qualquer, de uma cidadezinha litorânea perdida no tempo, carregava em suas paredes mal pintadas as cicatrizes de ventos mais hostis.

            Quando tudo era artesanato, existia ali um faroleiro, vivendo na casinha agora abandonada, no alto da torre. Hoje tudo é automático, comandado por alguma máquina de alguma central de controle indiferente.

            Ainda que fizesse figura bonita ao entardecer, imagem sempre tocante aos corações sensíveis, aquele farol nada seria demais, não fosse pela lembrança da moça constante, bonita e triste, que o visitava sempre, nos dias sem chuva. Permanecia ali por horas, enfiada na velha casinha do faroleiro, casinha que cheirava a madeira úmida, cigarro e água salgada.

            Costumava parar bem quieta, encostada no beiral da janela quebrada, olhando fixamente o mar, seus ouvidos atentos estendendo-se como um tapete para acolher aquele som de bicho, o grito rouco gutural da natureza líquida. O vai-e-vem das ondas lavando, purificando, desincrustando o seu pequeno e ardido coração.

            Ninguém sabia de sua mania de contar os navios, dezenas deles, que passavam ali todos os dias. Todas aquelas cores e formatos, seus múltiplos tamanhos, não lhe permitiam esquecer que existiam possibilidades infinitas disponíveis, pouco importando onde ela estivesse ou quem fosse.

            A liberdade destes momentos chegava plena e pueril. Aliviada, com os pés descalços na areia morna, cabelos jogados ao vento úmido, vestida de coisa velha e com a cara lavada, a moça se permitia caminhar por muito, muito tempo. Não encontrava em si desejo nenhum que não fosse par da realidade. Só sabia ser ela mesma, ainda que pouco reconhecesse os limites dessa definição – era apenas uma mulher pequena e branca – sempre com tantas perguntas e infinitos sorrisos, carregando em si todos os olhares do mundo.

            Extenuada, trazendo nas costas um fardo constante de dor, reconhecia a bondade constante das pessoas com certa perplexidade. Havia sempre dose extra de palavras doces, toques solidários e xícaras de chá quente onde quer que fosse. Deus era bom, mas a condescendência não a consolava. Via-se sendo paciente com quem lhe oferecia paciência e isso a agredia porque não se sentia boa.

            Quantas vezes ela chegou ao farol e o encontrou invadido? Paredes pichadas, cheiro de maconha e de restolhos de fogueira, manchas recentes nas paredes, a velha cama quebrada, garrafas de bebida espalhadas pelos cantos. Um dia seu peito gritou alto demais e ela destruiu tudo que encontrou. Deixou cacos de vidro por todo chão. Como a pobre protestante de Aigues-Mortes esculpiu as paredes com as próprias unhas. Esmurrou cada cômodo e agasalhou o chão com seus cabelos. Quando as mãos lhe doeram demais, eram as suas, mas também eram as dele. Sentia o calor daquele encaixe perfeito e rasgou as palmas com caco de telhas para poder separá-las, mas só conseguiu sangue, lágrimas e arrependimentos. As feridas abriam e fechavam em coro angélico e a moça purgava as culpas alheias em procissões fúnebres de amores desfeitos.

            Reconhecia, nela e na vida, tanta beleza e tanta feiúra.

            Lembrava-se de toda aquela ironia que habitava o rosto dele, dos olhos escuros, estranhamente brilhantes e sempre febris, olhos de um encanto desumano, olhos que lhe causavam prazer e medo. Por que amar o outro do outro? Uma força pulsante repuxava seu torço sempre que tentava conter o choro. De onde lhe saíra a donzela mercenária, aquela ensandecida implacável que nunca dizia não e que a fazia odiar tudo o que amava naquele homem sombrio que seu interior escolhera?

            Tantas e tantas vezes se viu fugindo dele e para ele nas noites de insônia. Entrava sorrateira, sentava em um canto no chão, ali onde a luz da lua prateava a parede e lhe dava um contorno onírico. Permanecia assim por horas a fio, em completo silêncio, quase invisível – em alguns dias lendo poesia, encolhida sob a luz de uma vela, em outros se banhando na escuridão – ouvindo a voz do oceano e vigiando o sono daquele que era o seu homem no mundo. Quando o frio lhe estremecia o corpo, corria para a cama dele, sabia que haveria calor naqueles braços conhecidos, então ele lhe sossegava a alma e lhe fazia dormir.

            Ela quer comprar o farol, quer viver lá para sempre, quer ficar velhinha ali, descobrindo o que dele ficou em cada janela, em cada móvel, em cada cômodo, em cada ruína.

            Existem dias em que a brisa é fresca e o sol é ameno. As pessoas que encontra tornam-se como imagens numa tela de cinema, projeções coloridas. Nada existe, exceto ela e a lembrança dele. A saudade concreta que pesa em seus ombros envelhece seus ossos, faz sua pele mais translúcida a cada manhã e devora sua já minguada carne.

            Ao percorrer o porto para chegar ao farol, ouve os gracejos dos estivadores. O desejo deles enoja, conspurca, reduz, empobrece. Nada em seu corpo lhe pertencia. O amor do homem-fantasma a arrastava para longe de tudo que vivia dentro dela e ao seu redor. Tudo se transformara num ato fúnebre, num mausoléu de defunto vivo, num relicário vazio. Viúva de marido vigoroso, a moça vestia o luto na opacidade do olhar.

            Sentia na boca o gosto dele sempre que bebia vinho, mas sabia que tudo nele era limão, verde, ácido e amargo. Tais quais suas últimas palavras, ainda retinindo em sua cabeça, como sino de missão. Ansiava pelo som das botas dele no piso de madeira, por seus dedos firmes apertando seu antebraço com pouco mais de força do que o necessário. A rispidez delicada de sua voz traduzia sempre um desejo maior que o dela. Ouvia da própria boca palavras de um desprezo falso, ao proferi-las sentia o pulmão voltar a encher-se dela mesma. Imaginava-o engolindo, qual ampulheta, cada segundo do tempo perdido naquela espera absurda, espera-aguilhão que as sombras de um medo pardo lhes trouxera do destino.

            A mente dela – o maior labirinto.

            Vivia perdida em suas muitas aleias, tantas armadilhas lhe empurravam para refúgios frágeis – tricotava, plantava, cozinhava, pintava, cozia. A única linha, ainda que tênue e inconstante, era o mar: as idas-e-vindas espumantes que lhe tiravam do inferno por um instante ou dois, mas cujo impacto não era capaz de liberá-la da corrente curta que a prendia aos rochedos de sua própria imaginação. Então ele a amava tanto que foi embora? Nunca houvera muita compreensão entre eles, toda uma vida de palavras curtas e beijos longos.

            E havia o pescoço, sempre lhe doendo do peso de seus pensamentos.

            Seguido via as mulheres na praia, expondo o corpo ao sol, mudando a cor da pele em infinitas nuances de ouro, queimando, queimando. Tamanha fragilidade exasperava seus olhos cor de tronco. Via a vida como quem vê o sopro num dente-de-leão.

            Nessas horas decidia que teria o que queria.

            De volta ao beiral no alto da torre, invejava dolorosamente cada barco no oceano e tentava adivinhar, num jogo masoquista, em qual deles seu homem estaria. Habitava a ambos essa imensa capacidade de encastelamento. Existiam para construir armaduras, encouraçando-se. E quanto mais defendidos mais abusados eram. Ele precisava voltar, devia voltar para ela!

            O choro diário tornava-se cada vez mais humilhante. Tal sofrimento só era aliviado nos dias de chuva, quando a moça, tomada por grande pavor, não ousava sair de casa. Silenciada em seu quarto, atada em seus próprios cobertores, cheirando a cânfora e camomila, de tão impregnada de si mesma nem se lembrava dele, pois tinha tanto, tanto medo.

            A tempestade teria de fato o poder de diluir a sina do farol, esvaziando-o aos poucos e abandonando-o a própria sorte, não fosse pela teimosia do outro, que vinha até ali escondido da vida que agora levava – Ah, como são ligeiros os mentirosos! – para pensar na mulher pequena e branca que um dia amou tanto que precisou deixar. Conhecia de largo seu medo de chuva, em suas pretensões de dono julgava saber tudo sobre ela, mas não sabia de nada sobre aquela mulher pensada tão sua que podia apenas deixar.

            Vinha até ali como um viciado. Procurava por ela, recolhia pistas de sua presença, intuía a maciez de sua pele, aspirava o cheiro de ervas de seus cabelos, ouvia a música serena de sua voz quando ele a tocava, som que em seus sonhos já se misturava ao rugido do mar. Ele odiava aquela bruxaria que ela lhe lançara, não admitia que algo ou alguém lhe condenasse a tal apego, sentia-se pequeno diante dela, da onipotência de seus sentimentos sutis, finos como fio de seda, mas de inacreditável resiliência.

            Acreditava-se tão autossuficiente em suas aventuras de risco máximo e fracasso calculado, enquanto ela lhe surgia como fonte de dádivas infindáveis, graça que ele simplesmente não se sentia capaz de aceitar. O prazer de sua presença surgia como pimenta adocicada, tão ansiogênica quanto tranquilizante, de tão confuso fugia e da fuga sempre voltava, fraco, carente. Jamais fora capaz de explicar a si mesmo sua real necessidade, no entanto seguia sentindo a flecha enfincada no peito, aquela saudade que lhe negava um instante sequer de paz, dessa paz que salvo em alguns momentos perdidos nos braços dela, nunca experimentara.

            Desejou tanto ser livre e agora que era, queria sentir-se preso, encaixado ao corpo e à vida dela como as palmeiras do quadro velho, em alto-relevo, parcialmente quebrado e pendurado torto na parede, última lembrança do antigo faroleiro. Queria contornos, mas se fizera borrão. Queria ser íntegro, mas se via peça perdida de um quebra-cabeça infinito.

            Tinha ido embora em setembro, era outra vez setembro, tudo de relevante lhe acontecia em setembro, no início da primavera, quando a vida recomeça. Sentia-se clichê de romance de quinta, não era nem o protagonista. De tal forma a futilidade deforma o caráter que a impressão causada aos olhos alheios – quase sempre olhos de tolice extrema – acaba por ser capital na destruição dos próprios anseios. A máscara fundindo-se no rosto e apodrecendo a alma, o mais valente cavaleiro virando infame bobo-da-corte.

            Não era capaz de esquecer o sorrido tímido que desabrochava naquela boca aristocrática, boca de cruezas e de doçuras, cumpridora de tudo que prometia. Ele sabia que lhe condenara a um castigo alto demais por ter boa família, boa aparência, boa educação. Reduzindo a si mesmo a mero capricho, fez da moça joguete da sorte e gostou de machucá-la, apenas para seguir se arrependendo. Qual será o valor da contrição do assassino confesso?

            Se de início seu brio de homem cresceu com a forma implacável como a tinha tratado, aos poucos tal bem estar foi dando lugar a um constrangimento gelado. Sabia que poderia matar por ela se fosse necessário, mas não era capaz de apenas abrir mão do próprio orgulho. Tratou então de atentar contra o amor próprio da mulher, mas nisso não obteve nenhum sucesso, já que o dela era bem maior que o seu. A mulher pequena e branca que ele cobrira de vergonha e de tristeza era senhora de um coração tão sólido que, embora despedaçado, seguia se recompondo e se enchendo de sede por justiça. Tal coração de mulher, em sua própria maneira estranha, sabia também ser muito caprichoso.

            O primeiro beijo, quase mítico, ainda o atordoava. Tão furioso ficara por sua própria derrota em resisti-la que lhe feriu a boca. Inesperadamente, viu-a lamber o próprio sangue e voltar a beijá-lo, e aquele gosto de ferro e saliva o enlouqueceram. Viu-se rasgando roupas numa fúria incontida e aquele sorriso de vitória nos lábios dela, se o irritava e diminuía também lhe multiplicava e lhe dava prazer. A inocência dela seguidamente lhe desarmava e o homem sombrio via nisso o maior dos perigos.

            Alguma magia da sorte ou do azar lhe mantinha menina, mesmo sendo mulher feita. Tão diferente das outras todas, não poucas com quem ele tinha cruzado – todas tão desesperadas por impressioná-lo, sempre tão tolas em artifícios e fingimentos, fazendo de tudo para convencê-lo, tão crédulas e manipuláveis, copiando umas as outras, tentando adivinhar seus desejos, todas tão insossas e tão falsas – todas exceto ela. Ele a queria tanto e de graça, temia tanto ser devorado que mal se dava conta de que tudo o que ela queria era poder acariciá-lo quando quisesse e aquecer-se em seus braços quando não conseguia dormir.

            O homem sombrio gastava seu tempo sentado nos degraus oblíquos que levavam ao topo do farol. Mirava o céu escuro, seu irmão de alma, deixava-se tiritar de frio, fumando um cigarro imaginário, uma vez que o verdadeiro tinha abandonado a pedido dela. Ela nunca fazia nada que pudesse machucá-la, mas vivia ferida, ferida por ele. Ele tinha que voltar para ela, ele precisava, ele queria, mas por alguma razão que não lograva enxergar, simplesmente não conseguia!

            A moça vivia sendo abordada por homens no caminho do farol, alguns era muito jovens, outros muito velhos, alguns tantos gentis, outros mais sedutores, de uma forma ou de outra, todos se revelavam inadequados. Recusou um sem fim de convites para jantar, eles persistiam e sempre lhe zombavam ao final – riam da moça linda e triste que envelhecia esperando um morto. Aqueles homens afoitos, pretendentes de uma mulher abandonada cheia de dotes, se não a aborreciam, certamente esgotavam. Certas coisas lhe surgiam tão claras, mesmo sua mente sendo de tal forma obscura!

            A lembrança da barba macia roçando de leve a pele de seu pescoço, sensação tão sabida e tão quente, expandia e encolhia alguma coisa específica dentro dela. Onde ele estaria? Com quem estaria? Nessas horas nada mais importava, nem seus próprios medos, nem os medos dele.

            O sol se abriu e junto dele veio toda a luz e todo o calor de que ela sempre precisava. O vento malvado, que tanta areia lhe trazia aos olhos, iria embora e a moça voltaria ao farol para descansar de tudo, do vento, daquele homem e dela mesma. A porta da casa do farol seguia entreaberta e a moça entrou, sentou-se em seu canto, recostou-se na janela e cochilou ao sol. A cena dela dormindo ali, desamparada e abatida, estranhamente concedia ao farol certo ar de esperança, uma atmosfera de conto, uma expectativa.

            Quando por fim acordou, arrepiou-se inteira diante da chuva que se doava torrencialmente - nada havia a ser feito, lhe restava resignar-se e esperar. Abraçou os joelhos preparando-se para o pânico que viria, mas inesperadamente nada aconteceu. Respirou fundo, abriu mais os olhos e sentiu um ligeiro tremor que lhe invadiu o peito lhe tirandoum pouco o coração do eixo. Resignada, deu-se conta de que enfim chegara o tempo, e sem a menor reação, percebeu que não tinha mais medo da chuva.

            A noite já ia alta no céu quando ela o viu no alto das escadas. Molhado, mais magro e mais velho, empalideceu ao reconhecê-la lá dentro. Num ímpeto escancarou a porta, a luz da lua caindo em cheio no rosto dela, coroando a mulher pequena e branca de uma aura indescritível que muito o apavorou. Diante de seu olhar firme e desafiador os joelhos dele tremeram. Tamanha confluência de sentimentos, de tão avassaladora o imobilizou por inteiro. A moça tampouco se movia, mas era mais por medo de estar sonhando, ou de ter se feito louca, delirante. Foi tamanho o desajuste daquele encontro que ao tentar entrar pela porta, acabou por assustá-la e viu-a afastar-se dele, dolorosamente, um passo ou dois.

            Havia dúvidas e havia certezas. Havia medo e havia desejo. Havia passado e havia futuro, mas ambos simplesmente não conseguiam cruzar-se no presente. Percebendo a dificuldade do momento, num esforço atroz, ela estendeu-lhe uma mão esperançosa. Havia lágrimas retidas e havia chuva torrencial. Havia silêncios constrangidos e havia respirações tangentes. Havia pensamentos em suspenso e tantas palavras voando mudas pelo ar, pela simples incompetência de se dizê-las.

            Passaram um longo e excruciante momento assim, um de frente para o outro, olhos ferventes em olhos de aço, ela de mão estendida, ele novamente na posição tão mais vantajosa da escolha. Outra vez ele duvidava do que sentia, do que via, do que queria e pressentindo nova derrota, a alegria dela começou a desvanecer-se. Foi praticamente apenas um leve toque de dedos, ela começou a sorrir para ele aliviada e no instante seguinte, sem que atinasse como ou porque ele fizera o que fez, viu o corpo do homem caindo para baixo na direção do mar e sendo levado inerte pela correnteza, deixando para ela apenas a lufada de um vento sinistro.

            Anos a atravessaram em segundos.

            Ébria de dor permaneceu um pouco mais no farol para despedir-se. O farol mágico, que tanto conforto e desespero fora capaz de lhe dar, voltaria a ser apenas uma coisa antiga qualquer.

            Sem chorar saiu dali e destemperada entregou-se vazia ao primeiro pescador, nem feio e nem velho, que encontrou na praia deserta. O homem a possuiu como um cavalo, cheirando a cachaça e sorrindo satisfeito, achando-se abençoado pela lua cheia.

            Não houve para ela nenhum prazer, nenhuma dor ou nenhum alívio, apenas calor, desprendimento e letargia. Quando por fim ele se cansou, adormeceu em seu peito e ela até achou bonito o seu cabelo ruivo. Conjecturou uma vida crua com aquele homem, perfeitamente estranho, ao seu lado. Aquela altura nada mais lhe importava muito. Poderia cozinhar para ele, esperar que voltasse do mar todas as noites, lavar sua roupa e ouvi-lo contar suas repetidas histórias de pescador. Cederia a seus arroubos de homem rude, aprenderia a gostar daquele corpo ainda viril e gastaria seus últimos anos de beleza sendo adorada por um homem de desejos simples e de mente plana.

            Saiu de lá antes do nascer do sol, quase nua e descalça. Pensou muito e seriamente em lançar-se do penhasco.

            A luz do sol enfim cortou a noite e a mulher pequena e branca, agora cheirando a beijo etílico de pescador, viu seu homem vomitado nas pedras da praia. Aproximou-se gelada e sem cor, pronta para colocar um fim de morte em sua história – mas ele abriu-lhe então os olhos, olhos mansos, de uma serenidade que só a dor é capaz de produzir nas almas de suprema obstinação.

            O homem sombrio perdeu uma perna e quebrou algumas costelas. A cicatriz na testa demoraria anos a ceder. Morrera no mar sua amarga teimosia e a lenta recuperação acabou por extinguir dele aquela idolatria de liberdade tola que todo imaturo acalenta sem rumo, gastando a vida em quimeras. Pronto e forte, ainda que debilitado, agarrou a mulher pequena de modo a não mais soltar. Sabia que podia viver sem ela, sabia que podia viver até sem ele mesmo, mas não era isso o que queria, nunca tinha sido. Assumira num sopro de lucidez que a ela pertencia e se a mulher o aceitasse, não haveria nunca mais o que pudesse separá-los.

            Ela o aceitou porque viu transparência em seus olhos. Cuidou dele por meses e meses, até quando a gravidez lhe permitiu. Depois se foram para o mundo, navegando sempre por águas calmas, em direção a um horizonte límpido. O homem sombrio assumiu para si o filho dela sem receio, sem perguntas e com afeto. Dizia a quem soubesse do caso que seu filho de cabelos cor-de-fogo era filho do destino, filho da vida e filho do mar...

            Ela sabia, porém, que o menino era filho de uma covardia, mas guardou mais isso no fosso de segredos que só as mães que amam seus filhos sabem direito onde está.


Danielli Morelli




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Danielli Morelli

É Doutoranda em Letras e Literatura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Possui Mestrado em Letras e Literatura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Possui Graduação em Letras (Português e Inglês) pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2015). Possui Graduação em Psicologia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2001). Tem experiência como professora na área de Letras, com ênfase em Literatura. Tem experiência como Psicoterapeuta na área de Psicologia Clínica.