CONTO - GAROTA NEUTRA

“NINGUNEAR é uma operação que consiste em
transformar ALGUÉM em NINGUÉM, em
NENHUM. De repente o nada se realiza, vira
corpo e olhos, vira nenhum.”

Octavio Paz

            Chegando lá tomou pelo caminho da esquerda, esgueirou-se atrás dos arbustos até alcançar um banco de cimento ocultado por um par de goiabeiras infantes, que ansiosas aguardavam comprador e terra fixa. Sentia um calor interno gripal, o calafrio no pescoço fazia coro desconexo com o suor das costas e do buço, sempre sabia que o clima era insalubre pela temperatura das mãos que sempre frias, agora ferviam. Os olhos embaçados pelo mal estar não distinguiam as flores, todas misturadas em pequenas fitas de cores borradas. O coração batia forte feito tambor africano e a respiração irregular foi ficando de tal forma acelerada, que sua última sensação foi a cabeça estourando na calçada rústica do chão da floricultura.
            Acordou com um pano molhado na testa. Outro sábado estilhaçado por suas neuras e hipocondria. Lágrimas escorreram de forma lenta e elegante. Alguém ofereceu uma camiseta em substituição pela sua, agora vermelha de um sangue velho.
            - Machucados na cabeça sempre sangram muito. O dela não parece grave...
            - Que é? Você agora é médico? Vá chamar a ambulância...
            Levantou-se num pulo e seguiu cambaleando até o portão, ignorou as vozes que protestavam por suas costas, cada vez mais distantes. Tomou a direção de casa meio aturdida. A cabeça latejava, a testa ardia, mas bem menos que seu coração.

            Ela. Ela perdera a história.
            Perdeu.
            Ela perdeu o tempo. Perdeu o rumo. Perdeu a deixa, o trem, o prumo. Perdeu o jeito em um dia mudo. Perdeu tudo? A vida?
            Jamais fora capaz de saber, na verdade, o exato momento, aquele específico instante epifânico, visionário, divisor de águas a partir do qual tinha passado a preferir lugares secretos, a ausência de palavras e sons, os escuros de sua incomensurável claridade. Quando encontrou aquele lugar onde seu nome nada significava, nem mesmo seu belo par de olhos verdes cerveja ou o negativo constante de sua conta bancária? Talvez quando ainda pequena, nas agruras de sua infância pública, talvez nos comichões de prazer das proezas sempre aplaudidas ou no risco assumido ao penetrar quartos proibidos, repletos das relíquias sagradas de uma santa avó falecida.
            O fato é que sempre que seu misantrópico radar identificava um lugar próximo, mas suficientemente distante das outras pessoas, algo fresco e com iluminação apropriada, perdia-se dentro com ganas de náufrago por terra firme.
            Estar só tornara-se tão confortável que não raro surpreendia-se em longos solilóquios bem humorados, ornados de risos, em que governava absoluta seu reino onírico, todo feito de segredinhos de adolescente, verdadeiro vício de moça velha: bela demais para amarguras, antiga demais para o embrutecimento ou os dramas gelados da nova ordem.
            Mantinha o quarto tão bagunçado quanto são os quartos fotografados por revistas de moda e costumes. Nada rosa ou preto. De tanta personalidade nenhuma se via. Exagero do mostrar-se, necessidade de antecipar no outro uma ideia de si, enxurrada de respostas para nenhuma pergunta, cada almofada um discurso, cada espelho uma imagem prévia, cada gravura um sem rosto efervescente, cada ornamento um preencher sem vazio aparente.
            Tinha passado dos 30 e, com eles, cruzado a linha permitida para a ostentação daquela franjinha curta colegial que mantinha em obliterada teimosia. O tom salsicha e desbotado do cabelo, ainda que sem intenção, acabava por remeter a certa deficiência intelectual latente - troço meio cantora indie-folk-hippie-punk-otária.

            Naquele dia específico tinha saído cedo de casa, imbuída na busca desenfreada por uma cortina de fuxicos e pedrarias, o mais artesanal possível, para acrescer ao nível do incomensurável o grau de originalidade de seu quarto amorfo. Peregrinando por mil feirinhas dos arredores da Paulista, se aventuraria em Embu das Artes, se necessário fosse.
            Sem vontade de ter amigos, enfiou-se num beco de blogueiros da elite que seguidamente a ignoravam, sempre ocupados bebendo da genialidade de modeletes pouco acima do peso e axilas cabeludas. Observava tristemente suas roupas escuras e meias-calças furadas, geralmente acompanhadas de tatoos de caveira mexicana, espremidas nos beijos de língua que davam nos namorados das amigas, tudo em prol de alguma nova onda feminazi ululante. Por alguma razão sentia-se excluída, talvez por causa das gordurinhas incompatíveis com os tops de couro desgastados, indispensáveis no figurino sadomasô.
            Num relance de perplexidade notou os brincos antiquados de algumas, pequenos e discretos, herança de alguma avó, vestida de petit-poire, em alguma longínqua festa de debutante. Não era a primeira vez e talvez nem a última, em que reconhecia na atmosfera dessas feiras, o sorriso irônico de certa professora de literatura francesa conhecida, com seus agradáveis 50 e poucos grisalhos, óculos grandes de grau e sandálias de dedos nos pés.
            Depressiva e fracassada na missão de resolver o caso da ausência de porta em seu quarto atrevido, regressou ao lar em passos lentos e alheios, passos sem desejo. Já em casa, dedicou longo tempo na análise calculista de seu corpo um pouco flácido, fingindo não compará-lo a cada detalhe com o da irmã, mais alta e mais magra. Incomodava-a aquela aparente desconexão e falta de atrativos. Enfiada dentro de lingerie menor, cujo propósito de concepção, se para seduzir, fracassava soberbamente, via-se antes uma espécie de jaboti, carregando garboso casco nas costas.
            Em lágrimas curtas, rezou silenciosamente a uma imagem da Virgem de Guadalupe hospedada na bancada do espelho. Presente de sua mãe no regresso de algum destes países onde até santas usam batom vermelho, talvez fosse poderosa para revelar por alguma ação sobrenatural ao sujeito que estava para chegar, com quem na realidade sequer queria sair, o fato de ser hoje seu 31º aniversário. Talvez lhe trouxesse um presente e ignorasse sua recém-adquirida barriga.
            Já saía com B há uns dois anos. Verdade que alguns intervalos deixavam a contagem incompleta, quando ele namorava sério ou pensava manter-se só em busca de um amor verdadeiro, tais pausas duravam duas ou três semanas e coincidentemente começavam em seu período menstrual ou quando, por alguma razão ou outra, ela não desejava sexo. Desejava mesmo era sair com A, mas era constantemente ignorada por ele, algo que ela explicava com a lógica complexa de alguma cultura social de livro distópico. Sabendo da impossibilidade de satisfazer seu desejo, mas incapaz de viver num mundo onde não fosse desejada, temendo simplesmente deixar de existir, recebia B, mesmo que banhada na ambiguidade daquela relação ocasional e repleta de inconvenientes em suas conveniências.
            Aceitava B em plenitude, com seu signo de peixes e olhares displicentes, com suas carícias apressadas e conversas evasivas. Há alguns meses, porém, no segundo em que B cruzava a porta, sentia nele a outra, aquela com quem ele de fato desejava estar, mas com quem jamais estaria. A presença dela, oceânica e perfumada, concedia-lhe a graça de não nutrir qualquer esperança. B usava aquela quase relação frustrante e frustrada como um silenciador temporário da voz que lhe gritava no peito tentando convencê-lo a sair daquela aura de morto-vivo. Tal era seu grau de condicionamento que nem necessitava de uso frequente: uma vez ou outra, a cada uma ou duas semanas, B podia contar com a garota neutra dentro dela, silenciosa e pneumática, desiludida e permissiva.
            Experientes, encenavam a tragicomédia com maestria. Ela se emperequetava o suficiente para despertar nele o mesmo ardor que sentia por um banco vazio no metrô das 18h em São Paulo. Ele cumpria respeitosamente o protocolo e pagava o jantar, sempre no mesmo restaurante onde levava a mãe, todas as ex-namoradas e outras garotas neutras de sua vida.
            Naquela noite o sexo tinha sido como em qualquer outra. Sentia-se o corpo, mas não a pele. Olhavam-se nos olhos bem depressa, mantendo uma polidez, mas evitando uma conexão exagerada. Quando, por um momento, por um engano, ela demorou os olhos sobre o rosto dele, arrepiou-se com aquele outro tão outro. Como sempre, falaram entre si coisas que não costumavam falar com as demais pessoas, numa tentativa frágil de dar importância ao que viviam, mas a verdade é que qualquer tentativa real de diálogo, que não consistisse em generalizações complexas ou trechos de literatura marginal, fazia-se água fervida.
            Pouco mais sensível que o habitual, talvez pelo aniversário ignorado por B e por todo mundo, tentou convencer-se de que bem lá no fim tudo aquilo valeria a pena. No desfecho, porém, mesmo após três orgasmos distraídos e um ou outro beijo mais intenso, tudo pelo que mais ansiava era vê-lo vestir-se de costas e dirigir-se para a porta de saída, como sempre sem previsão de retorno.
            Não houve uma única vez, entre todas com B, que não refletisse se não seria mais fácil, mais barato e mais decente adquirir um vibrador.
            B, de caráter mais poético e mais covarde, buscava dar sentido a tudo aquilo, procurava indícios da presença dela em seus braços, mas nada permanecia, nem o perfume, nem o tom da voz, nem um fio de cabelo, nada. Assim que cruzava a porta daquele apartamento estranho, mal se recordava dos traços do rosto dela ou do formato do corpo ou de qualquer opinião relevante. Ele pensava se não preferia o tempo em que sua garota neutra era a própria ex-namorada, podia ao menos confortar-se com a sombra de um passado entre eles, o aconchego do luto pelo mesmo morto.
            Vendo-se só outra vez, ela tomava um banho quase infinito, precisava lavar-se bem das invasões que ela mesma autorizara. Esquecia pedaço por pedaço daquelas alegrias fulgazes e achava que ele tinha pênis pequeno, excesso ou falta de virilidade, pouca eloquência, inabilidade no beijo ou qualquer defeito que a ajudasse a justificar a queda da máscara de emancipação que a impelira pela enézima vez ao encontro do nada. Reconhecia que cada toque compartilhado provinha de um repertório todo adquirido em outras bocas e em outros corpos, mera atuação mil vezes repetida com qualquer outra, com qualquer um.
            Ia dormir sempre com frio nesses dias em que via B. Naqueles anos quase nunca ficara para dormir e nas raríssimas exceções em que se propôs a isso, sempre por motivos de ordem puramente prática, seu abraço se mostrara tão desconfortável quanto suas conversas – sempre tão cultas, mas sempre tão ácidas! Um nada sobre tudo apimentado. Talvez a complexidade fosse um eficiente antídoto contra a intimidade.
            Foi em uma manhã cinza que a mudança começou a insinuar-se.
            Primeiro cortou o cabelo inteiro, máquina zero, apagamento. A brutalidade do ato traduziu-se em leveza, vento morno em asa de beija-flor, sangue quente correndo veloz nas veias, encorpando rios caudalosos que hidratavam planetas.
            A necessidade monástica lhe lavou a cara e mudou todo seu guarda-roupa. Quase sem querer passou a seguir A pelas ruas depois do trabalho, seu absoluto espanto ao vê-la careca motivou-a a buscar por ele em todo canto e lugar. Esquivava-se num grande chapéu marrom que herdara do avô e o acompanhava por cerca de apenas meio quarteirão todos os dias, observando cientificamente tudo o que fazia até atravessar o semáforo, no rumo de casa, onde sua namorada, também neutra, o esperava com a indiferença blasé das intelectualóides decotadas.
            Entorpecida, passou a acompanhá-lo assiduamente em todas as redes sociais onde o encontrou. Precisava compreender o motivo pelo qual simplesmente não conseguia deixar de gostar dele e, talvez, através desse viés formatar a si mesma. Se conseguisse concluir aquela Gestalt, se conseguisse interpretar aquele mar codificado à sua frente, conseguisse adquirir sabor. Talvez aprendesse a gostar de B, talvez ele conseguir gostar dela como gostava daquela outra tão outra, aquela admirada constantemente em fotos do Instagram, mas de quem não se aproximaria, com a desculpa de não atrapalhar seu próprio ‘planejamento’, mas que no íntimo sabia que nunca iria gostar dele de fato se o conhecesse de verdade. ‘E se ela quisesse casar? E se ela não quisesse se enfiar num barco centenário, num rio poluído, na PQP da Índia? E se ele não pudesse ser o Proust da pós-modernidade apenas por tornar-se adicto de seus pijamas e do seu sorriso?’
            Todo mundo tão preocupado em como entrar na história e ela preocupada apenas em como sair dela...Frase engraçadinha de rede social!
            Pensou em procurar a melhor amiga, mas já sabia de cor o discurso do ‘descubra-se a si mesma’, pedindo nas entrelinhas que não olhasse tanto para ela, que mantivesse sua inveja sob controle.
            Na última conversa com B calou-se diante de seu prolixo falatório sobre grandes planos de viagem e aventuras. Cena meio triste e fora de foco, ele ali dizendo isso, completamente nu em sua cama, marinheiro frequentando prostituta de porto. No íntimo pouco se lhe importava se ia ou ficava porque não era dele que sonhava ouvir declarações de amor e promessas piegas em noite de lua.
            Nenhum dos dois parecia admitir a dose de fragmentação necessária para a manutenção de tais encontros quase anônimos – seguiam ambos indeterminados, nem felizes, nem tristes, corpos sem luz, descorados, distimicos.
            Já era o fim da primavera quando sentiu aquele apertão no braço direito. A, entre histérico e compadecido, ameaçava chamar a polícia caso não parasse de persegui-lo, ‘louca inoportuna’, ‘gorducha sem graça’, ‘mal amada’ e todas as tradicionais gentilezas reservadas aos pobres azarados, acometidos dessas paixonites não-correspondidas, foram largamente evocadas e seu coração já mil vezes partido, foi por fim pulverizado.
            Saiu correndo pela rua, chorando na chuva, decidida a demitir-se no dia seguinte. Em casa, depois de acalmar-se, no espelho deu a primeira das muitas piscadelas que daria daí em diante, sentia-se magra e achava que o cabelo curtíssimo lhe caía bem. A, ao fim de alguns dias, se tornou em seu catálogo, apenas mais um cego idiota.
            Desempregada e desiludida gastou os primeiros dias de cabelo sujo e pote de sorvete nas mãos. Deu-se conta de que não havia ninguém no mundo a quem gostaria de confiar sua atual situação e que também não haveria dinheiro para o próximo aluguel. Pensou em ligar para os pais, ambos re-casados e com filhos mais novos para cuidar, mas ao final de algumas horas considerou despudorado ao extremo procurá-los após meses de ausência bilateral, com o único propósito o de pedir dinheiro. Pensou até em pedir ajuda a B, mas tudo na história daquele relacionamento fora sempre construído de modo a deixar claro que nenhum dos dois estaria disponível em caso de necessidade. Poderia ceder aos apelos da sapata cinquentona rica e masoquista do quinto andar, mas o discurso de gênero não triunfara em tornar ambígua sua já tão melindrosa orientação sexual. Além do quê, ser ‘teúda e manteúda’ é ser puta em qualquer opção e o desconstrutivismo ainda não flexibilizara todos os aspectos de sua formação moral.
            Por alguns longos e obscuros instantes cogitou a hipótese de lançar-se pela janela, mas imaginou-se tão feia com a cara toda fodida no chão...Devia haver uma saída mais razoável, precisava haver!
            Vendeu pela internet suas poucas jóias e alguns eletrodomésticos inúteis como o ferro de passar roupas. O minúsculo pé-de-meia talvez lhe garantisse uns dois ou três meses de subsistência se abrisse mão dos cosméticos importados e do jantar – poderia até perder alguns quilos e reduzir a silhueta, algo sempre desejável. Num impulso encerrou seu blog cretino, repleto de tentativas de mostrar-se mais inteligente do que fato era, fechou contas em toda e qualquer rede social em prol de se livrar de sua obsessão por A e enviou CVs para todos os cantos, na esperança de ao menos não virar uma sem-teto.
            Dor de cotovelo se cura com realidade.
            No dia em que conseguiu finalmente reunir em si todas as sílabas necessárias e dispensou B com certa dose de sarcasmo, sorriu perplexa diante do comentário tardio sobre seu cabelo curtíssimo e sobre o exotismo do tom de seus olhos.
            O tempo passou de forma dúbia - dias longos seguidos de dias curtos - não viu o azul ou cinza do céu, não se aqueceu ao sol ou se molhou na chuva. Os segundos pariram os minutos que deram origem às horas que em grupos de 24 erigiram dias, semanas e meses. Quando deu por si, já fazia mais de três anos que sequer tocava outro ser humano. Sem ressentimentos admitiu que o sexo não costuma ser satisfatório por mais de três minutos pós-coito se, em tudo mais que envolve o contato humano, não se é sequer humano. Diante disso, ocupou-se em descobrir-se pessoa.
            O cabelo castanho escuro já lhe chegava aos ombros, liso e em corte reto, dava-lhe um aspecto limpo e elegante. Mais magra, graças às correrias de seu novo emprego, melhor remunerado e mais interessante, estava prestes a quitar a última de suas dívidas. Há muito se livrara daquela ridícula cortina de fuxicos e instalara uma porta decente no quarto.
            Em um evento literário outrora considerado ‘careta’, esbarrou em A que de início sequer a reconheceu. Não sabia bem se ela havia crescido ou se ele é quem havia diminuído, o fato é que o percebeu baixo e insípido. Meia-hora depois de um conversa fácil e sem atrativos, despediu-o e voltou para casa, onde seu cachorro fofo e sua cama limpa a esperavam para mais uma maratona de séries de TV amenas.
            Anos depois reencontrou B em um parque em outro país. O magricela ganhara corpo e brilho, também casamento e filhos. Entre constrangidos e cúmplices por terem se conhecido numa fase tão disforme de suas respectivas experiências de vida, seguravam na voz e no olhar certa emoção. Os elogios inesperados de B, sinceros e afetivos, muito a surpreenderam e alegraram. Perplexos pela surpresa do encontro e pela intensidade das questões reabertas admitiram num silêncio parceiro a total inexistência de atração de qualquer espécie entre eles, revelando a natureza daquela relação construída, muito mais de companheiros de batalhão de uma guerra a qual nenhum dos dois queria ter ido.
            De volta ao hotel, viajando sozinha como costumava, deprimiu-se um pouco, mas sem desesperar-se, dessa melancolia de quem cresceu muito e em pouco tempo. A lucidez era uma dádiva, mas o preço pago por ela seria o desencanto? Na vida tivera um namorado e alguns casos, os finais seguiam tristes e tão cansativos que a tornaram preguiçosa para novos começos. Dera-se conta por experiência própria e alheia que azar no amor não era prerrogativa das neutras, acontecia também entre as positivas e as negativas.
            A solidão lhe doía sem agonias – algumas vezes mais e algumas vezes menos – geralmente aumentada nos dias férteis de casa mês. Compreendeu melhor sua sexualidade quando aprendeu a relacioná-la com as fases da lua e apregoou para si mesma o fato de que, independentemente dos vários anos de militância feminina, homens e mulheres são e sempre serão muito diferentes, mas também muito parecidos.
            Crescendo sem travas no trabalho, logo se mudou para um apartamento maior e melhor, adotou mais um vira-lata e agora tinha dois amores fiéis que a seguiam para todo lado – por vezes se reconhecia neles, então se lembrava do tempo em que perseguia A pelos quarteirões, sem esperança e sem autoestima. Nesses breves instantes os enchia de carinho e dava-lhe biscoitos especiais, como numa espécie de compensação por seu tempo de vira-lata abandonada na chuva da loucura. Sempre sorria aberto ao vê-los abanando os rabinhos elétricos em franca felicidade só por vê-la cruzando a porta de entrada, seus latidos cantantes soavam como aquele ‘eu te amo’ de entrega plena, sempre sonhado e jamais ouvido.
            Ao fim, a paz de espírito abriu espaço ao respeito próprio, com ele semeou um amor tão grande e tão sincero por si mesma e pela vida, que passou a encontrar beleza em todos os cantos em que se metia.
            C surgiu quase tarde demais, mas recompensou seu atraso com dose extra da mais prazerosa companhia. E aquela garota neutra, que de neutra nunca tivera nada, tornou-se imagem de grafia reforçada na mente e na alma de todos aqueles que então a conheciam.


Danielli Morelli




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Danielli Morelli

É Doutoranda em Letras e Literatura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Possui Mestrado em Letras e Literatura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Possui Graduação em Letras (Português e Inglês) pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2015). Possui Graduação em Psicologia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2001). Tem experiência como professora na área de Letras, com ênfase em Literatura. Tem experiência como Psicoterapeuta na área de Psicologia Clínica.