ARTIGO - O Homem de cabeça de Papelão’ de João do Rio e algumas considerações sobre a constituição da identidade do homem moderno.
Danielli de Cassia Morelli Pedrosa
“...a identidade somente se torna uma questão quando
está em crise, quando algo que se supõe fixo, coerente
e estável é deslocado pela experiência da dúvida e da incerteza.”
Kobena Mercer
 João do Rio (1881-1921), pseudônimo mais notório de João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto, foi um prolífico escritor e jornalista carioca, reconhecido também por sua análise antropológica e sociológica das religiões no Rio de Janeiro. Eleito para a Academia Brasileira de Letras em 1910, desafeto de nomes como Humberto de Campos, suposto homossexual e verdadeiro ‘dândi de salão’, recebeu milhares de pessoas em seu funeral e inúmeras homenagens póstumas. Sua obra literária, vasta e original, composta por contos, crônicas e peças teatrais, revela tanto sua personalidade exuberante quanto novos posicionamentos políticos e sociais.
 No conto ‘O Homem de Cabeça de Papelão’, João do Rio conta a saga de um homem completamente deslocado no meio em que nasceu e vive. Antenor, considerado exceção mal vista, existe em total desacordo com a norma de seus concidadãos. Sendo criticado até por sua família que o via como uma revolução que chegava, desafia a ordem vigente por pensar livremente, dizer a verdade e ser “incompreensivelmente bom” (Rio, p.1). A descrição de seu país, cujo “bom senso” admitia todo tipo de corrupção e utilitarismo, torna o texto atualíssimo, sendo possível aferir e aproveitar suas variadas críticas implícitas, como se tivesse sido escrito para hoje. Diante da pressão do meio social e da família, fracassado em sua vida profissional e correndo o risco de ser rejeitado pela mulher que desejava, o protagonista acaba cedendo à ideia de ter uma ‘cabeça que regula’ e, num recurso maravilhoso da narrativa, troca a sua pela de papelão. Após a troca, em pouco tempo não só recebe a aceitação geral da comunidade, como passa a ser prodígio. Mais adiante, mesmo sabendo que sua verdadeira cabeça era excepcional, prefere a de papelão, “E, em vez de viver no País do Sol um rapaz chamado Antenor, que não conseguia nada tendo a cabeça mais admirável – um dos elementos mais ilustres do País do Sol foi Antenor, que conseguiu tudo com uma cabeça de papelão.” (Rio, p.5)
 De modo geral, o texto de João do Rio é rico em referências, podendo ser abordado de diversas maneiras, oferecendo várias compreensões e muitos níveis de aproveitamento. Logo no primeiro parágrafo, ao descrever o País do Sol, o autor permite antever elementos da realidade brasileira da época, como o fim da política ‘café com leite’ que com a traição aos paulistas levou Getúlio Vargas ao poder (“..partidos nacionalistas, ausência de conservadores...”), o êxodo rural (“Os habitantes fluíam todos para a capital...”), a influência maciça dos EUA (“...tudo quanto a cidade de fantasia pode almejar para ser igual a uma grande cidade com pretensões de América.”) e com ironia revela uma crítica bastante ácida ao comentar que “...o povo que a habitava julgava-se, além de inteligente, possuidor de imenso bom senso. Bom senso! Se não fosse a capital do País do Sol, a cidade seria a capital do Bom Senso!” Vale salientar que o trecho “aborrecimento integral” parece fazer menção aos integralistas que apoiaram Getúlio Vargas, doutrina política tradicionalista, ultraconservadora, inspirada na doutrina social da Igreja Católica e que defendia a ordem e a paz através do respeito às hierarquias sociais, fundamentando-se em aptidões e méritos pessoais demonstrados e opondo-se à Revolução Francesa, comunismo e anarquismo.
 O fenômeno da troca das cabeças e, consequentemente, da identidade no sentido amplo, incluindo questões de valores e de moralidade, oferece outro olhar possível para essa narrativa, o da reflexão sobre o quanto as práticas sociais, na modernidade, são constantemente analisadas e reformadas à luz das informações obtidas, alterando inclusive seu caráter. Ao admitir a possibilidade de um total abandono daquilo que supostamente se constituía um sujeito unificado e adotar uma nova persona, completamente oposta à anterior, basicamente pela imposição do meio, o conto de João do Rio abre espaço para uma reflexão sobre o tipo de transformações que de tão agudas podem abalar a ideia que se tem de si mesmo como sujeito integrado, descentrando o indivíduo, tanto de seu lugar no mundo social e cultural quanto na própria compreensão de si, causando o que se pode chamar de ‘crise de identidade’.
 O objetivo deste estudo é refletir sobre aspectos referentes à constituição da identidade do homem moderno presentes na obra, homem moderno aqui compreendido como aquele que já não conta com o suporte da tradição para perpetuar práticas sociais recorrentes e que precisa lidar com mudanças sociais cada vez mais rápidas e mais profundas, causadoras de um “processo sem fim de rupturas e fragmentações internas no seu próprio interior” (Harvey apud Hall, 2015, p.13)
 Vale recordar que o sujeito do Iluminismo baseava-se numa concepção de homem como um indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado de habilidades como a razão, a consciência e a ação, composto por uma ‘essência’ ou núcleo interior que emergia quando do seu nascimento e que se desenvolvia junto ao indivíduo com a experiência da vida, porém sem se alterar enquanto essência. O centro essencial do ‘ eu’ era o que se pode chamar de identidade.
 Por outro lado, a noção do sujeito sociológico passa a refletir a complexidade do mundo moderno e revela uma compreensão de que este núcleo interior do sujeito não possui autonomia plena ou autossuficiência, mas é formado pela relação com outras pessoas que influenciariam na formação de valores e na compreensão dos sentidos e significados da realidade, em outras palavras, pela cultura. A identidade seria então formada na interação do eu com a sociedade. A essência do homem seria formada e modificada pelo diálogo com o mundo.
 Do ponto de vista da atualidade, o sujeito, anteriormente vivido como sendo dotado de uma identidade unificada e estável, fragmentou-se e é composto, não de uma, mas de várias identidades, algumas das quais contraditórias e não resolvidas. A identidade, portanto, passa a ser definida historicamente e não biologicamente, como bem ilustra a narrativa de João do Rio.
 O nascimento do ‘indivíduo soberano’ ocorrido entre o humanismo renascentista do século XVI e o Iluminismo do século XVIII, representou enorme ruptura com o passado e suas concepções. Vários movimentos importantes no pensamento e na cultura ocidentais contribuíram para essa nova concepção de homem: a Reforma Protestante, que libertou a consciência individual das instituições religiosas da Igreja e a expôs diretamente diante de Deus; o humanismo renascentista, que colocou o homem no centro do universo; as revoluções científicas, que deram ao homem a capacidade de inquirir, investigar e decifrar os mistérios da natureza e o Iluminismo, com seu homem racional, científico, libertado de dogmas e da intolerância, diante do qual se expunha a totalidade da história humana para ser compreendida e dominada. (Hall, 2015, p.18)
 Figura importante nessas reformulações de concepção de homem, conhecido como o ‘pai da filosofia moderna, matemático e cientista, profundamente influenciado pela ‘nova ciência’ do século XVII, Descartes foi atingido pela profunda dúvida que se seguiu ao deslocamento de Deus do centro do universo. “E o fato de que o sujeito moderno ‘nasceu’ no meio da dúvida e do ceticismo metafísico nos faz lembrar que ele nunca foi estabelecido e unificado como essa forma de descrevê-lo parecia sugerir.” (Hall, 2015, p.18)
 A influência de Santo Agostinho no pensamento de Descartes é indiscutível. A ênfase na reflexão, a importância do cogito, o papel central da prova da existência de Deus que vem ‘de dentro’, das ideias próprias em vez de no exterior (como em São Tomás de Aquino), tudo isso o coloca na revitalização agostiniana da Renascença, ainda assim, Descartes estabelece na interioridade agostiniana uma mudança radical: ele situa as fontes morais dentro do homem. (Taylor, 1997, p.180) Descarte apresenta um novo entendimento da razão e de sua hegemonia sobre as paixões, estabelecendo-os como a essência da moralidade.
Para Descartes, o universo devia ser compreendido mecanicamente, pelo método resolutivo combinatório de Galileu. Em sua opinião, conhecer a realidade era ter uma representação correta das coisas, sendo que não seria possível ter conhecimento daquilo que está fora a não ser por meio das ideias que estão dentro do homem. A partir dessa compreensão, faz-se necessário construir uma representação da realidade, a ordem das ideias deixa de ser algo que se descobre a passa a ser algo que se constrói.
 Descartes postula duas substâncias distintas: a matéria (substância espacial) e a mente (substância pensante) e refocaliza o dualismo entre ‘mente’ e ‘matéria’. “As coisas devem ser explicadas, ele acreditava, por uma redução aos seus elementos essenciais à quantidade mínima de elementos e, em última análise, aos seus elementos irredutíveis.” (Hall, 2015, p.19) Os pensamentos deveriam ser organizados, construindo-os do mais simples para o mais complexo, a ordem das representações deveriam satisfazer os padrões derivados da atividade pensante do conhecedor, certas exigências subjetivas, deste modo, estabeleceu o sujeito individual no centro da ‘mente’, constituído por sua capacidade de raciocinar e pensar: “Cogito, ergo sum” (“Penso, logo existo”).
 No pensamento cartesiano, diferentemente do que ocorre em Platão, não existe uma ordem de Ideias para a qual o homem possa se voltar.
O mundo material aqui inclui o corpo, e chegar a perceber a verdadeira distinção requer que nos desliguemos de nossa habitual perspectiva incorporada, dentro da qual a pessoa comum tende a ver os objetos à sua volta como realmente qualificados pela cor, doçura ou calor, tende a pensar na dor ou nas cócegas como algo que está no dente ou no pé. Temos que objetificar o mundo, o que inclui o nosso próprio corpo, e isso significa passar a vê-lo mecânica e funcionalmente, da mesma forma que faria um observador externo não envolvido nele. (Taylor, 1997, p.192)
 No conto, essa ideia de objetificação do mundo e do corpo, é muito bem representada pela passagem em que Antenor, já convencido de que ‘não regulava’, visita o relojoeiro com o propósito de ter uma avaliação de sua cabeça. A troca das cabeças, no conto retratada de forma absolutamente natural, por um recurso do maravilhoso, expressa de forma direta essa possibilidade de contemplar e conhecer todos os elementos da realidade, incluindo o próprio corpo humano, não pelos sentidos ou pela faculdade da imaginação, mas apenas pela compreensão, não pelo fato de serem sentidos ou tocados, mas por serem concebidos pelo pensamento. Em Descartes, a matéria deixa de ser vista como um local de eventos e qualidades cuja verdadeira natureza é mental e passa a ser objetificada, ou compreendida como algo ‘desencantado’, como mero mecanismo, despido de qualquer essência espiritual ou dimensão expressiva.
  “A alma cartesiana liberta-se não ao se afastar da experiência encarnada, mas ao objetificá-la. O corpo é um objeto inevitável de sua atenção, por assim dizer. A alma precisa apoiar-se nele para se libertar dele.” (Taylor, 1997, p. 194) A opção de Descartes é ver a capacidade de pensar como uma capacidade de construir ordens que satisfaçam padrões exigidos pelo conhecimento, ou compreensão, ou certeza. Em sua concepção estes padrões são os da evidência, a razão sendo o elemento controlador da vida, não os sentidos, o autodomínio consistindo no fato de que a vida seja moldada pelas ordens que a razão constrói de acordo com os padrões apropriados.
 No conto, o que leva Antenor ao relojoeiro, não é o desejo de ter Maria Antônia, como parece a princípio, mas a percepção racional de que sua forma de ser e agir não atendia as expectativas, primeiro dos padrões alheios e depois dos dele mesmo, ocasionando ao personagem total insatisfação. Na concepção cartesiana, a única preocupação do homem deve ser aquilo que nele conduz sua conduta, tal questão sendo discutida em função da vontade:
 
O livre-arbítrio é em si a coisa mais nobre que podemos ter porque, de certa maneira, torna-nos semelhantes a Deus e isenta-nos de lhe sermos subordinados; assim, seu uso correto é o maior de todos os bens que possuímos e, além disso, não há nada que seja mais nosso ou que nos importe mais. De tudo isso, concluímos que nada nos pode dar mais contentamento que o livre-arbítrio. (Descartes apud Taylor, 1997 ,p.195)
 A separação extrema entre a mente e um universo compreendido como mecanicista e, que, portanto, não é um meio de pensamento ou de significado, possibilita o ‘desencantar’ da realidade. O cosmo não é mais visto como a incorporação da ordem significativa que pode definir o bem para o homem. Ao apreender o mundo como mecanismo, passa-se a vê-lo como um domínio do controle instrumental potencial. O modelo de domínio racional de Descartes se revela como uma questão de controle instrumental. Ao libertar-se da ilusão da mistura entre mente e matéria, possibilita-se uma compreensão que facilita seu controle. Libertar-se das paixões e obedecer à razão é dar às paixões uma direção instrumental. “A hegemonia da razão não se define mais como a da visão dominante, e sim como uma atividade diretiva que subordina um reino funcional.” (Taylor, 1997, p.197)
 Na compreensão cartesiana, o objetivo da reflexão é obter uma certeza autossuficiente. O que se obtém no cogito e no processo de percepções claras e distintas é esse tipo de certeza, que consigo gerar para mim ao seguir o método certo. O desfecho do conto de João do Rio parece evidenciar essa ideia. Após ter trocado sua cabeça excepcional pela cabeça de papelão, após ter conquistado com a segunda tudo o que com a sua própria jamais teria conseguido, inclusive superando qualquer expectativa anterior de fama e sucesso, Antenor sem hesitar deixa a sua própria cabeça com o relojoeiro, preterindo-a pela de papelão definitivamente. A facilidade com que faz a troca final, a convicção com que se afasta da cabeça original sem pestanejar, revela essa certeza autossuficiente nascida da análise instrumental e mecanicista da realidade.
 Com essa concepção de ‘desprendimento’ ou ‘objetificação’ Descartes acabou por articular um dos desenvolvimentos mais significativos da era moderna. Através dessa ideia de controle instrumental, nasce o ideal crescente de um agente humano que se julga capaz de remodelar-se através da ação metódica e disciplinada. “O que isso requer é a capacidade de adotar uma postura instrumental em relação a suas propriedades, desejos, inclinações, tendências, hábitos de pensamento e sentimento, para que esses possam ser elaborados, eliminando alguns e fortalecendo outros, até se chegar à especificação desejada.” (Taylor, 1997, p. 210) Ao objetificar um domínio qualquer, torna-se possível privá-lo de sua força normativa sobre o homem – ao se tomar um domínio do ser que até então estabeleceu as normas e os padrões, adotando uma postura neutra em relação a ele, torna-se possível objetificá-lo e com isso dominá-lo.
 Se pela descrição de Merleau-Ponty, toma-se conhecimento do objeto por meio da experiência, o que Descartes incita a fazer é parar de viver ‘dentro’ ou ‘por meio’ da experiência, tratá-la como objeto ou como uma experiência que poderia ser de qualquer pessoa. Ao fazer isso se esvazia a experiência e não a aceito como aquilo que estabelece normas relativas ao conhecimento obtido por elas. “O desprendimento envolve a saída da postura de primeira pessoa e a adoção de uma teoria, ou pelo menos de uma suposição, a respeito de como as coisas funcionam.” (Taylor, 1997, p.213) Nessa compreensão, ao invés de ser levado ao erro pela tendenciosidade ordinária da experiência, o sujeito distancia-se dela e a reconstrói objetivamente, tirando dela conclusões mais razoáveis. Para obter o controle de apetites e preceptores, pratica-se uma reflexão radical. A experiência é privada de seu poder, fonte de ilusão e erro. No que tange ao ‘desprendimento’ dos sentimentos, procura-se distanciar-se da dimensão intencional – o sujeito deve sufocar a reação tratando-a apenas como reação, e não uma percepção válida.
 O ‘self-pontual’ de Locke, importante filósofo do Iluminismo e discípulo de Descartes, levou o desprendimento cartesiano muito mais longe, envolvendo uma postura do homem com relação a ele mesmo que tira dele a forma normal de experienciar o mundo e a ele mesmo e rejeita toda e qualquer forma de doutrina das ideias natas. Ao rejeitar a ideia do homem nato, Locke explicita sua perspectiva antiteleológica da natureza humana, tanto em conhecimento quanto em moralidade e coloca-se contra qualquer perspectiva que considere o homem inclinado para a verdade ou, de alguma maneira, sintonizado a ela, seja na variante antiga, de que, sendo um ser racional, o homem tendia constitucionalmente ao reconhecimento de uma ordem racional das coisas, ou na variante moderna, de que o homem teria ideias inatas, ou uma tendência inata a desenvolver um pensamento para a verdade.
 Para o filósofo iluminista, as concepções humanas de mundo são sínteses das ideias que recebemos originalmente da sensação e da reflexão, mas se unicamente sob a influência da paixão, do costume e da educação, tais sínteses são feitas sem consciência e sem boas bases. “Passamos a acreditar em coisas e a aceitar noções que parecem sólidas e inevitáveis, mas não tem qualquer validade. Porém, como essas noções são os veículos de todos os nossos pensamentos, achamos difícil aceitar que sejam questionadas.” (Taylor, 1997, p. 217)
 Locke, assim como Descartes antes e a tradição tomística-aristotélica de outra maneira, propõe demolir e reconstruir, um desprendimento de crenças e sínteses espontâneas a fim de submetê-las a análise. Tal reconstrução partindo dos tijolos das ideias simples, remontando a visão de mundo sobre alicerces sólidos, segundo regras de concatenação confiáveis. Locke também propõe um ideal de independência e auto-responsabilidade, uma noção da razão como algo livre do costume estabelecido e da autoridade local dominante. Em sua concepção, o conhecimento não é genuíno a menos que seja desenvolvido pela própria pessoa. “Conhecer é diferente de apenas acreditar em algo. Para conhecer, é preciso ser capaz de ‘fazer uma descrição’” (Taylor, 1997, p. 219)
 A ideia de desprendimento também altera a concepção de motivação. Norteado por uma teoria hedonista, Locke considera que o prazer e a dor são para o homem o bem e o mal – as coisas sendo boas ou más apenas em relação ao prazer ou à dor que proporcionam e são elas que motivam o homem. Indo mais adiante, Locke estabelece não ser diretamente a perspectiva do bem, ou do prazer, que nos motiva, mas sim o ‘desconforto’. O desejo inclusive sendo visto como um desconforto, uma vez que se torna uma fonte de inquietação da mente. “Bem e mal, presente e ausente, é verdade, atuam sobre a mente. Mas o que determina imediatamente a vontade, de tempos em tempos, para toda ação voluntária, é o desconforto do desejo.” (Locke apud Taylor, 1997, p. 221) O desconforto mais premente vai determinar a vontade e aquilo que o homem chama de ‘suas inclinações’, para Locke será fruto da associação que cada ser humano faz entre seu desconforto interior e certos bens.
 No conto, percebe-se com clareza que Antenor vai de uma situação de rejeição social ampla, para um fracasso profissional total, depois para uma intolerância familiar declarada e dificuldade de estabelecer relações de amizade. Embora sofrendo várias sanções por causa de cada um desses ‘desconfortos’ ainda acredita em si mesmo e tolera as afrontas, convicto de estar com a razão. É apenas quando se apaixona por Maria Antônia e a deseja, reconhecendo o perigo de não ter seu desejo satisfeito (desconforto extremo) pelo fato de que ela também acreditava que ele não ‘regulava’, que decide (motivação) visitar o relojoeiro e concebe a possibilidade de realmente existir alguma problema em sua forma de agir e pensar. Independente dos significados morais contidos na narrativa de João do Rio pode-se observar nitidamente, na postura extrema de Antenor, ao aceitar a cabeça de papelão e a reformulação total de caráter e de identidade dela resultante, a atuação radical de desprendimento que caracteriza o ‘self pontual’ de Locke, também frequentemente observável no homem moderno, sobretudo o homem da modernidade tardia, que de tão mutante tem sido considerado líquido em suas referências, características e escolhas identitárias:
 
O desprendimento tanto das atividades do pensamento como de nossos desejos e gostos irrefletidos permite que nos vejamos como objetos de profundas reformas. O controle racional pode estender-se à recriação de nossos hábitos e, assim, de nós mesmos. A noção de ‘hábito’ passou por uma mudança; não tem mais sua força aristotélica, em que nossos héxeis são formados contra o pano de fundo de uma natureza com certa inclinação. Os hábitos agora vinculam elementos entre os quais não há mais relações de encaixe natural. As conexões apropriadas são determinadas de maneira puramente instrumental, pelo que trará os melhores resultados, prazer ou felicidade. (Taylor, 1997 , p. 223)
 Do ponto de vista da materialidade do texto, o uso da antítese como recurso, presença extensiva em todo o texto, acaba por destacar aspectos da desestabilização do homem moderno que não conta mais com elementos de referência fixa e segue em fragmentação, assumindo identidades diferentes em momentos diferentes, dentro dele habitando identidades contraditórias (Hall, 2015, p.12).
 Pensando a antítese como a figura de retórica que consiste em opor a uma ideia outra de sentido contrário, pode-se inferir que seu uso, bem como o de suas variantes (o paradoxo e o oxímoro), oferece um reflexo da própria realidade, que ao apresentar-se sempre múltipla e diversificada, é em si mesma contrastante. Othon Garcia, em seu livro ‘Comunicação em Prosa Moderna’, argumenta que sem as contradições da realidade o homem seria incapaz de absorvê-la em completude, uma vez que “só fazemos ideia do que é preto porque sabemos o que é branco. (...) Tudo, afinal, se resume a um jogo de contrastes...” (p.78). O texto antitético de João do Rio causa um efeito de pêndulo que coloca o leitor numa posição expectante frente ao destino de Antenor, alimentando um desejo e uma esperança de redenção para a personagem, de um retorno para o sujeito ancorado do início, que ao fim não acontece.
 A primeira antítese do conto é bastante significativa ao deixar implícitas outras tantas contradições. Ao escrever sobre o “...País que chamavam de Sol, apesar de chover, às vezes, semanas inteiras...”, o autor faz uma referência à obra de Tomaso Campanella, a ‘Cidade do Sol’ que escrita em 1602 pelo monge dominicano, trata de uma utopia inspirada na tradição esotérica platônica, a respeito de uma sociedade ideal e comunista, governada por um príncipe-sacerdote chamado ‘Sol’ com o auxílio der Pon (potência), Sin (sapiência) e Mor (amor), onde todos os moradores regem a vida unicamente pela razão, não existindo propriedade privada e onde os menores atos são realizados em conjunto. O País do Sol é apresentado como o oposto disso em diversos aspectos e mesmo sendo considerado ‘país lendário’ é descrito como comum e o menos surpreendente.
 Outras ideias antitéticas como: ‘campo e cidade’, ‘mendigos e parasitas’, ‘prédios altos e prédios baixos’, ‘cidade de fantasia com cidadãos de bom senso’, ‘não fazer nada por mal e ser incompreensivelmente bom’, ‘não estudar e ser bacharel’, ‘respeitável progenitora que acha que falar a verdade é um defeito horrível no filho’, ‘trabalhar é igual a ser vagabundo’, ‘não ser aturado por ser sem exigências e até alegre’, ‘fazer mais que os outros era ser mau companheiro’, ‘quem mais lucrava com Antenor era quem mais lhe difamava’, ‘a cabeça mais admirável não consegue nada’, ‘a cabeça de papelão consegue tudo’; vão costurar o conto do início ao fim, explicitando a fragmentação da identidade de Antenor frente a ação da realidade social que o circunda e influencia na materialidade do texto.
  Referência relevante que também ilustra a questão da mudança radical de atitude, que sempre carrega em si contradições, é o próprio nome Antenor. Na Ilíada este é o nome do ancião troiano, companheiro e conselheiro de Príamo que traiu o amigo e a pátria e ajudou os gregos a invadir Tróia. Ironicamente, Antenor também foi o nome de um dos líderes da revolução de 30 que traíram Júlio Prestes. Maria Antônia é outra escolha de nome que não parece desinvestida de intenção por parte do autor e que também tem carga antitética, nome frequente das filhas da realeza portuguesa, ao atribuí-lo à filha da lavadeira, João do Rio cria três ideias contraditórias, a primeira pela própria condição social da personagem, a segunda ao relacioná-la com a descrição de Antenor no primeiro parágrafo: “...um homem de nome Antenor. Não era príncipe. Nem deputado. Nem rico. Nem jornalista. Absolutamente sem importância social” e a terceira, na comparação com as outras pretendentes de Antenor: “Outras Marias ricas, de posição, eram de opinião da primeira Maria. Ele só tinha de escolher.”
  Interessante notar que ao abrir o texto com uma referência que remete ao homem do final da Idade Média, época da Reforma Protestante e início da Modernidade, momento quando se começa a flertar com a possibilidade de um predomínio da razão sobre a vida e sobre os acontecimentos e, portanto, um maior controle do homem sobre seu próprio destino e terminar o conto com um homem capaz de alterar completamente sua própria identidade e destino, João do Rio parece traçar toda a jornada de crise identitárias do homem moderno. Ao sair de si, abandonando a ideia de essência singular e estável, dialogando com a cultura e com os aspectos sociais (do mais amplo ao mais íntimo) e deixando-se definir por aquilo que se espera dele num padrão de mundo em que prestígio e celebridade são mais relevantes que o ‘ser’, o homem apresentado pelo escritor carioca no texto citado pode ser incluído em qualquer texto sobre a vida na chamada ‘pós-modernidade’, ‘modernidade líquida’ ou ‘modernidade tardia’.
  Zygmunt Bauman, ao tratar sobre a atualidade, vai definir aquilo que chamou de “vida líquida’como “...uma sucessão de reinícios...” (2009, p.8) e esclarece que numa realidade onde o desapego parece ser um instrumento de sobrevivência psíquica, na qual as coisas mudam numa velocidade muito maior do que as pessoas são capazes de acompanhar e onde não existe estabilidade em nenhuma área, abrir mão e seguir em frente precisa ser rápido e indolor, sem o quê reiniciar seria inimaginável. Antenor abre mão de sua excepcional cabeça, esquece Maria Antônia e todas as suas antigas certezas em pouquíssimo tempo e não titubeia diante da possibilidade de retomar sua antiga cabeça.
 Na modernidade tardia, a chamada ‘destruição criativa’ passa a ser condição absoluta da sobrevivência e, movida por valores como o hedonismo, o materialismo e o consumismo, a ‘modernidade líquida’ exige do homem uma reformulação constante que, se por um lado oferece benefícios, como o abandono de valores tradicionais que o impediam de gozar liberdades imprescindíveis, também tira dele certas bases conceituais de valores e de moral igualmente fundamentais e que, ao serem desestruturadas, favorecem o enlouquecimento, tanto social quanto individual. Se é verdade que Antenor se torna o homem mais bem sucedido do País do Sol, usando a cabeça de papelão, também é verdade que tal país era absolutamente doentio e moralmente decaído e que, do ponto de vista do homem ético, ser prodígio em tal sociedade se traduz em fracasso definitivo como indivíduo.
Referências Bibliográficas:
BAUMAN, Zygmunt. Vida Líquida. Tradução Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade.Tradução Tomaz Tadeu da Silva & Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: Lamparina, 2015.
TAYLOR, Charles. As fontes do self: A construção da identidade moderna. Tradução Adail Ubirajara Sobral & Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Edições Loyola, 1997.
Danielli Morelli
Danielli Morelli
É Doutoranda em Letras e Literatura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Possui Mestrado em Letras e Literatura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Possui Graduação em Letras (Português e Inglês) pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2015). Possui Graduação em Psicologia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2001). Tem experiência como professora na área de Letras, com ênfase em Literatura. Tem experiência como Psicoterapeuta na área de Psicologia Clínica.