ARTIGO - THE WAVES E ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A CONSTITUIÇÃO DO ROMANCE MODERNO NA OBRA DE VIRGÍNIA WOOLF

Danielli de Cassia Morelli Pedrosa

“Aprende a te fazer semelhante aos outros...
Mas que essa empatia não provenha da mente – pois com a mente é fácil -,
e sim do coração, com amor por eles.”
Tchekov – ‘Gússev’

            A criação artística e seu modus operandi é uma preocupação constante em toda a obra de Virgínia Woolf. A discussão sobre a escrita e o fazer criativo percorre várias narrativas e surge inclusive nos conflitos das personagens, algumas das quais artistas e escritores, ou ao menos aspirantes de uma voz expressiva.

            Em seu ensaio ‘Ficção moderna’ considera que se o escritor fosse um homem livre, se pudesse de fato escrever o que deseja e não o que deve, se pudesse tornar sua própria emoção a base de sua obra e não as convenções, não haveria enredo, ou comédia, ou tragédia, ou catástrofe, ou história de amor no estilo considerado adequado. “A vida não é uma série de óculos que, arrumados simetricamente, brilham; a vida é um halo luminoso, um envoltório semitransparente que do começo ao fim da consciência nos cerca.” (p.109)

            Questionando-se sobre a missão do romancista, a autora inglesa - chamada por Otto Maria Carpeaux de ‘aristocrata da erudição’, em virtude de suas ligações sociais e familiares com alguns dos maiores expoentes da intelectualidade inglesa de sua época e de sua extensa cultura e excelente formação – afirma que é sua tarefa transmitir esse espírito variável, desconhecido e incircunscrito, independente do que ele apresentar, com o mínimo de mistura possível do que lhe é alheio. Propõe sinceridade e coragem no ato da escrita e afirma que a matéria adequada à ficção é um pouco diferente daquilo ao qual o hábito acabou por considerar apropriado.

            Ao tratar de autores jovens de sua época, entre os quais considerou James Joyce o mais notável, reconhece neles o esforço para chegar mais perto da vida, preservando com mais sinceridade e exatidão tudo o que lhes comovia e interessava, ainda que nesta intenção abrissem mão da maioria das convenções habitualmente perseguidas por um romancista: “...sua sinceridade é profunda e o resultado, ainda que o julguemos difícil ou desagradável, inegavelmente importante.” (p.110)

            Ao falar sobre Joyce, ressalta sua ‘espiritualidade’, justificando-a por uma preocupação em revelar, a qualquer preço, as oscilações de uma chama interior tão íntima e resguardada que dispara mensagens pelo cérebro e, para ser preservada, exige coragem para desconsiderar tudo o que pareça fortuito, probabilidades, coerências, ou qualquer suporte que tenham sido utilizados há gerações para amparar a imaginação do leitor. “Se é a vida assim que queremos, aqui a temos decerto.” (p.111)

            Refletindo sobre o método como possível fator inibidor da força criadora, Woolf considera que se de fato existem escritores, todos os métodos estão corretos, qualquer método pode ser apropriado, desde que seja capaz de expressar o que o desejo do escritor almeja e isso traz o leitor mais perto da intenção do romancista. Em sua opinião, o problema com o qual o escritor de seu tempo se defrontava, como talvez também tivesse ocorrido com os de gerações anteriores, seria o da invenção de meios de estar livre para registrar aquilo que escolhe registrar.

           

Ele tem a coragem de dizer que o que lhe interessa não é mais ‘aquilo’, mas ‘isto’: e apenas a partir ‘disso’ é que deve construir sua obra. Para os modernos, o ponto de interesse, ‘isto’, muito provavelmente jaz nas obscuras paragens da psicologia. (...) a ênfase é posta num coisa até então ignorada; de imediato se torna necessária uma outra ideia de forma, de difícil apreensão por nós e, para nossos predecessores, incompreensível. (Woolf, 2014,p. 113)

)             Completamente disposta a arriscar-se no experimentalismo literário, afirma que não existe limite, método ou experiência proibida, exceto a falsidade e o fingimento. Em sua opinião, a matéria apropriada à ficção não existe, tudo serve de tema, qualquer sentimento, pensamento, qualquer característica da mente ou do espírito pode entrar em cena, nenhuma percepção poderia tornar-se descabida ou menos meritória.

            De forma geral, o tratamento do espaço, bem como o do tempo, é fundamental na literatura modernista inglesa. Na obra de Virgínia Woolf, pode-se afirmar que somados a estes elementos, também preocupações intensas com a forma e o conteúdo, são significativas no desenvolvimento de sua escrita. Outros aspectos, como a ênfase no feminismo, pontuada por teóricos, e algumas críticas pós-coloniais, podem colocá-la para além do modernismo. (Pereira, 2013)

            A discussão identitária também é recorrente. ‘Quem sou eu?’ e expressões análogas surgem em toda a produção literária da autora, de forma direta e indireta, especializando-se, muitas vezes, na intenção de alcançar um sentido de identidade feminina. Muitos de seus textos representam os medos e a problemática do ‘ser mulher’. Ao abordar as dores e delícias da feminilidade e da masculinidade, traz à tona muitas teorias empíricas da crítica feminista. “...a doença, as perturbações nervosas e a morte, são as frequentes consequências literárias de expressar em ações os desejos femininos subversivos, nos quais a maioria dos romances de Woolf estão intrinsecamente focalizados.” (Pereira, 2013, p.52)

            Do ponto de vista da linguagem, embora muitas das ideias da escritora estejam conectadas com um conceito muito próprio de self e com análises prévias da vida interior, suas noções de escrita lírica não estão identificadas com projeções psicológicas. O foco principal de seu trabalho - embora sobre esse tema pairem algumas controvérsias - reside na necessidade de combinar ambos, a experiência artística interior e exterior. Essa combinação deve partir da consciência particular até os fatos externos e, posteriormente, a conceitos e valores gerais. Nesta concepção formal, a poesia começaria com o self, mas o levaria a uma espécie de ‘despersonalização’ . Processo similar ocorre na prosa narrativa lírica. Palavras articuladas no tempo e no espaço, não são reproduzidas de forma precisa, mas reorganizadas em um design estético específico, capaz de tornar-se universal e simbólico. (Freedman, 1963)

            Compreendendo a poesia como firmemente identificada com a impessoalidade, Woolf substituiu as saídas encontradas por romancistas tradicionais por descrições e articulações da relação do homem com ele mesmo, com outros homens e com a vida como um todo, através de solilóquios, construídos geralmente em solitude. Embora sua concepção de poesia transpareça em crescente abstração, e ainda que isso pareça um pouco contraditório, Woolf acredita que tanto poetas, quanto romancistas, sempre criam a partir dos fatos. Tais fatos devem ser remodelados em uma visão simbólica, mas o poeta precisa começar por eles e por sua relação com estes fatos. Em resumo, pode-se afirmar que o método poético de Virgínia Woolf, amplamente aplicado em seus romances, constitui-se de uma combinação de valores impessoais e de fatos concretos, ao invés de pura subjetividade. (Freedman, 1963)

            Escrito entre 1929 e 1931, iniciado quando Virgínia estava com 47 anos e na plenitude de sua carreira literária, The Waves foi concebido primeiramente como o título The Moths , surgindo da ideia de trabalhar num romance capaz de apresentar a vida como um intricado arranjo de performances. Ao preparar-se para começá-lo, a romancistas registra em seu diário: “Os poetas criam simplificando. Não incluem praticamente nada. Eu quero incluir praticamente tudo; (quero) impregnar. É o que eu quero fazer agora. Incluir o romance, o fato, o sórdido: mas tornados transparentes.” (Woolf, 2011, p.6)

            Considerado como uma obra-prima e o melhor livro de Virgínia por Leonard Woolf e chamado de “poemance” por outro amigo cuja opinião a autora respeitava, The Waves é visto por sua própria autora como a obra em que encontra seu verdadeiro estilo literário. De fato, está claro em seu diário que sua principal preocupação ao escrever este livro era atingir a perfeição formal. Através de um processo de simplificação e transformação que se trata de uma conversão do detalhe irrelevante em forma relevante, Virgínia vai alcançando aquilo que vai chamar de ‘ritmo’ do romance – uma forma ao mesmo tempo simples e complexa, clara e obscura.

            Composto de forma polifônica, a obra descreve a trajetória de vida de seis amigos: Bernard, Neville, Louis, Susan, Rhoda e Jinny. Embora apareçam outros personagens fundamentais para a narrativa, como Percival, que inclusive serve de ponto de referência para todos, serão estes seis que irão se revezar em solilóquios íntimos que, paulatinamente, permitem ao leitor uma compreensão plena de suas personalidades, dos fatos e das impressões que têm sobre si mesmos, sobre a vida, sobre o mundo e uns sobre os outros.

            Todas as fases da vida dos personagens serão ‘emolduradas’ por belíssimas descrições em prosa poética do que, num primeiro momento, parecem tratar de um único dia na beira do mar, de onde se pode vislumbrar um jardim e uma casa. Após a leitura atenta, observa-se que tais descrições também demonstram a passagem das estações do ano, indicadas pelas mudanças na vegetação e vão acompanhando, embora em ritmo próprio, as etapas do desenvolvimento da vida dos personagens, que vão sendo relatadas segundo os conflitos e experiências de cada um. O efeito causado na alternância é a de uma coreografia entre a efemeridade da vida humana e a eternidade da natureza, em seus ciclos de renovação constante. O mar realça este ritmo cíclico e é refletido nos solilóquios.

            A própria relação entre os personagens pode ser vista como cíclica, uma vez que cada um está ligado ao outro, todos unidos em torno de Percival, que parece ser uma espécie de consciência comum a todos, um elo metafísico que os liga, lembrando que seu nome remete à lenda do Santo Graal e, portanto ao cristianismo mais primitivo, além de ser apresentado como ‘um deus’ e ‘senhor da moral’ e amar Susan, representante da tradição, conforme se verá mais adiante:

           

Louis, Neville, Susan, Jinny e Rhoda. Perto deles tenho varias facetas. Eles me recompõem nas trevas. (...) Vejo Louis burilado em pedra, escultural; Neville cortado a tesoura, exato; Susan com olhos como contas de cristal; Jinny dançando como uma labareda, febril, ardente, sobre terra seca; e Rhoda, a ninfa da fonte, sempre úmida. São imagens fantásticas – são ficções, visões de amigos ausentes, grotescas, hidrópicas, desfazendo-se ao primeiro toque da ponta de uma bota real. (Woolf, 2011, p.117).

            A análise dos personagens permite múltiplas interpretações e conexões, refletindo o padrão psicológico para o planejamento do livro: um todo único, formado de uma relação harmoniosa entre várias partes separadas. Deste modo o design estético e o volume psicológico podem ser considerados uma única coisa. “A estrutura básica de ‘The Waves’ é simples e óbvia, mas a simetria e a perfeição da forma são somente apreciadas totalmente por um entendimento do imaginário que é o fator de unificação ligando os seis personagens separados, e os poemas em prosa e monólogos.” (Pereira, 2013, p. 132)

            É pelo imaginário que Woolf unifica sua obra, criando toda uma rede de relações e demandas, verdadeira apreensão ‘espacial’ como numa pintura. O livro não pode ser lido como uma história em sequência e, por isso, representa a liberdade de Woolf frente às técnicas tradicionais de se contar histórias. O monólogo silencioso não permite ao leitor criar respostas tradicionais ao personagem e ao fato.

            Através de uma análise do imaginário torna-se possível uma compreensão mais ampla do significado estrutural do romance, uma vez que são as ligações imaginárias que unem e os poemas em prosa e os solilóquios, o imaginário de um se reflete no imaginário do outro. A voz dos personagens reflete os temas principais dos poemas em prosa.

            Susan, cuja existência parece tão conectada com a natureza, personifica as estações: “I think I am the field, I am the barn, I am the trees.” (p.104) e “I am not a woman, but the light that falls on this gate, on this ground. I am the seasons, I think sometimes, January, May, November; the mud, the mist, the dawn.” (p.105) Susan se apresenta como uma parte do ritmo da natureza, destaca o ritmo da vida, sua eternidade e repetição, revelando que, assim como os dias da semana, meses e estações, a vida dos seis personagens não tem significado como fenômenos finitos, em separado, mas apenas como parte dessa incessante renovação. (Pereira, 2013, p.134)

            Rhoda, frequentemente comparada a um pássaro, revela um importante elemento dentro deste quadro do imaginário natural. Nos poemas em prosa, tais animais são descritos como cantando separadamente a princípio e aos poucos se unindo num canto em coro, depois o medo surge e eles se separam, eventualmente sendo silenciados. Embora este processo reflita, em algum nível, a experiência de todos os personagens, será nos solilóquios de Rhoda que isso ganhará tons mais específicos. Sua primeira fala, “I hear a sound (...) cheep, chirp; cheep, chirp. (p.7) sugere o som de um pássaro, sua observação do “grey-shelled snail” , remete ao poema em prosa anterior onde pássaros batem nas conchas dos caracóis e as quebram sobre uma pedra. A seguir, Rhoda diz: “The bird sangs in chorus first (...) Now the scullery door is unbarred. Off they fly (…) But one sings by the bedroom window alone.” (p.9), tais palavras sendo ecoadas, posteriormente, nos poemas em prosa. E Rhoda, em sua própria compreensão, é o pássaro “taking its way alone made wing for the marsh and sat solitary on a White stake, opening its wings and shutting them.” (p.198), descrito no poema em prosa.

            A imagem que mais aproxima os dois enredos é, sem dúvida, a das ondas. Em seu diário, Woolf comenta ser impossível a qualquer um, ao ler The Waves, não ouvir as ondas. Da mesma forma como a descrição das ondas é fundamental nos poemas em prosa, também se torna parte relevante nos monólogos. Uma das melhores ilustrações deste fato, entre várias outras, é a fala de Rhoda: “I am like the foam that races over the beach or the moonlight that falls arrow like here on a tin can, here on a spike of the mailed sea holly, or a bone or a half-eaten bolt.” A imagem das ondas parece exercer a função de simbolizar a eternidade da vida, seu ritmo eterno de encher e cair. Outra representação para a imagem das ondas está no tumulto da vida, mais uma vez presente no discurso de Rhoda que, após a morte de Percival, afirma: “I ride rough Waters and shall sink with no one to save me.” Também para Susan as ondas representam medo e caos, embora diferentemente de Rhoda, permaneça ilesa graças ao seu vínculo com a natureza , com sua força na tradição e é vista, por Neville como se estivesse “strike like a limpet to the same rock”

            Deste modo, a imagem das ondas representa a vida em sua totalidade, seu lado sereno e seu lado imprevisível e traiçoeiro, sempre poderosa, sempre criadora, sempre destrutiva, cheia de padrões mesmo em meio ao caos, que assim como o das ondas é um padrão eterno e balanceado. No trecho final, espécie de releitura feita por Bernard da vida de todos, o imaginário dos poemas em prosa vai paulatinamente se combinando aos solilóquios. Woolf revela em seu diário que de fato pretendia um ‘mosaico’ para o fim, alcançando o efeito da continuidade da vida em si, vida natural e vida humana que se renovam, num ciclo eterno.

            Algumas imagens estão mais associadas a um personagem que a outros. As pétalas na tina e o pássaro que canta sozinho são facilmente vinculados a Rhoda. A árvore, símbolo aparentemente ligado à morte (passagem das estações), com seu terror e insuperável ameaça é associada muitas vezes a Neville, assim como degraus. Em seu diário, Woolf comenta preferir utilizar as imagens apenas sugerindo-as, sem estabelecer algum tipo de coerência direta. As folhas, embora também estejam relacionadas à ideia da passagem do tempo, são vinculadas a Jinny e à sua maneira destemida de encarar a idade que se aproxima e, com ela, a velhice. Dessa maneira, a imagem da folha se agitando sugere também o espírito da vida. Outras imagens marcantes relacionadas a personagens são a teia de aranha (Bernard) e o pingo ou gota (Jinny).

            Outro ponto organizador da narrativa está na harmonia das relações entre os personagens que se organiza em várias configurações, permitindo compreensões importantes.

            Antonio Bivar, em seu prefácio à edição de 2011 de ‘As Ondas’, ao analisar os personagens opta por destacar os contrastes entre eles e considera Bernard, Neville e Jinny, com seu aparente dom para a intimidade e uma relação mais casual na conversação, como se dotados de uma ‘natureza mais mundana’, enquanto Louis, Rhoda e Susan seriam mais silenciosos, apreensivos, inibidos, místicos.

            Em outra configuração possível, verificam-se três pares que se formam no encontro em Hampton Court: Susan e Bernard, demonstrando um entendimento solidário e de conforto mútuo; Jinny e Neville, que compartilham a intolerância frente as tradições morais e as paixões do corpo, nem sempre toleradas pela sociedade; Louis e Rhoda, cuja ligação óbvia e sutil, se revela na compreensão do terror da vida, inseguranças, isolamento, bem expresso na similaridade de seus imaginários.

            Uma análise de pares opostos também se mostra bastante reveladora, Bernard e Neville identificam suas similaridades exatamente ao reconhecer suas oposições; Susan e Jinny são emocionalmente opostas. Louis e Rhoda, embora muito mais semelhantes que opostos, estão separados pelo seu isolamento.

            O equilíbrio entre macho e fêmea se dá numa prevalência dos atributos emocionais representados pelas personagens femininas, enquanto as questões do intelecto são trabalhadas no eixo masculino. Enquanto na voz das mulheres se reconhece verdadeiro cortejo de emoções humanas: rancores, amor, ira, paixão, fervor, terror, angústia, medo e repressão; a voz masculina discute aspectos da criação da perfeição artística, principalmente na literatura.

            De forma geral, enquanto as personagens masculinas se mostram mais complexas e menos óbvias na apreensão, as personagens femininas parecem ser descritas de forma mais arquetípica e, portanto, mais estereotipadas, ou ‘planas’. Embora algumas impressões variem dependendo de quem as descreve, as três são bem definidas naquilo que talvez fossem as únicas possibilidades para a vida de uma mulher na época: a mãe-esposa, a amante e a virgem. Enquanto Susan traz a força e o peso da convenção, da tradição, da manutenção dos papéis sociais, Jinny carrega a sensualidade, a coqueteria e a liberdade plena de expressão e experiência. Rhoda representa a introversão, a hiper-sensibilidade, a expressão como possibilidade, a solitude bem explorada.

            Segundo Pereira (2013), em Rhoda observa-se um padrão do imaginário do livro como um todo. As personagens seriam ao mesmo tempo seis pessoas e uma única pessoa, e cada pessoa é construída em muitas partes separadas. Este paradoxo seria o significado primordial do romance. “O enigma da identidade é, para mim, um dos principais temas do romance, declarado e repetido em toda parte, e consolidado no resumo de Bernard”. (p.143) É Bernard, provável protagonista (embora isso seja sugerido de forma sutil), que atua como ligação entre os seis personagens, mostrando que as seis vidas são de fato uma, ou que são parte de um todo.

            É inevitável associar The Waves ao trabalho de um pintor abstrato, uma vez que o grande prazer em sua leitura jaz exatamente da possibilidade de apreciação das relações harmoniosas entre as partes. Sem dúvida, o desejo de Woolf de alcançar um novo patamar estético e criativo, que oferecesse uma nova solidez e profundidade a uma escrita que já vinha sendo desenvolvida de maneira corajosamente experimental, foi alcançado aqui. Também é em The Waves que a busca da autora por uma forma na qual a experiência interior e a exterior pudesse ser combinada, naquilo que chamou de ‘momento’, ou a contração de imagens interiores significativas coletadas da vida parece ter chegado a um lugar plenamente satisfatório para a autora.

            Aquilo que compreendia como ‘momento’, exerceria também uma função epistemológica de clarificar as implicações da consciência para a experiência de vida do artista: uma versão única da imaginação. O ‘momento’ envolveria a possibilidade de relacionamento entre a consciência mental com o corpo como um todo, incluindo os órgãos do sentido, bem como o imenso mundo de objetos apreendidos da realidade externa. (Freedman, 1963, p.197)

            Concluindo, pode-se afirmar que em The Waves a consciência artística de Virgínia Woolf alcança uma maturidade plena, a concepção mosaicista com a qual elabora a obra conquista um resultado coeso, denso, abrangente, de um misticismo próprio e de uma beleza inigualável, colocando a autora no rol dos melhores escritores da literatura universal, algo que já se prenunciava em Mrs. Dalloway, To the Lighthouse e Orlando. A originalidade, a inteligência e a acuidade com que absorve o mundo e concebe a equação entre imagens, personagens, lirismo, tempo e espaço, transformam The Waves em uma obra singular, cuja natureza rara transmuta a peculiaridade da própria autora.

Referências Bibliográficas:

FREEDMAN, R. The Lyrical Novel: Studies in Hermann Hesse, Andre Gide and Virginia Woolf. London: Oxford University Press, 1963.
PEREIRA, M.H. A Jornada Científica,Psicológica e Literária de Virgínia Woolf: Entorno de Mrs. Dalloway, To the Lighthouse e The Waves. São Paulo: Scortecci, 2013.
WOOLF, Virginia Stephen, 1882-1941. The Diary of Virginia Woolf. Edição Anne Olivier Bell. USA: Harvest Book, 1981
______________ The Waves. New York: HB&Co, 1983.
______________ As Ondas. Tradução Lya Luft. Osasco, SP: Novo Século Editora, 2011.
__________ O Valor do Riso. Tradução e notas Leonardo Fróes. São Paulo: Cosac Naify, 2014.

Notas

I) As Ondas
II) Despersonalização aqui compreendida como um distanciamento entre a percepção da realidade e o self. III) As Mariposas.
IV) ...que sou o campo, que sou o celeiro, que sou as árvores... (tradução Lya Luft – p.99)
V) ...não sou uma mulher, mas a luz que cai neste portão, neste solo. Sou as estações, penso às vezes, janeiro, maio, novembro, a lama, a neblina, a madrugada.” (tradução Lya Luft – p.100)
VI) Ouço um som, chip, chap, chip, chap (tradução Lya Luft – p.14)
VII) Caracol de casca cinza (tradução nossa)
VIII)Primeiro, os pássaros cantam em coro (...) Agora, a porta da despensa foi aberta. Eles saem em revoada. (...) Um deles, porém, canta sozinho na janela do quarto de dormir.” (tradução Lya Luft – p.16)
IX) ...um pássaro solitário voou até o charco, pousando isolado numa estaca branca, abrindo e fechando as asas. (tradução Lya Luft – p.177)
X) Sou como a espuma que corre pela praia ou o luar que despenca como uma seta sobre uma vasilha de estanho, sobre uma espiga de azevim-do-mar, sobre um osso ou um barco meio carcomido. (tradução Lya Luft – p.130)
XI) Cavalgo sobre as ondas e afundarei sem ninguém que me salve. (tradução Lya Luft – p.157)
XII) ...agarrada como um marisco ao mesmo rochedo. (tradução Lya Luft – p. 207)



Danielli Morelli




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Danielli Morelli

É Doutoranda em Letras e Literatura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Possui Mestrado em Letras e Literatura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Possui Graduação em Letras (Português e Inglês) pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2015). Possui Graduação em Psicologia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2001). Tem experiência como professora na área de Letras, com ênfase em Literatura. Tem experiência como Psicoterapeuta na área de Psicologia Clínica.