ARTIGO - MARINA, A INTANGÍVEL: MURILO RUBIÃO E O PROCESSO DE CRIAÇÃO LITERÁRIA

Danielli de Cassia Morelli Pedrosa

            De modo geral, o conto é um texto literário bastante difícil de especificar, considerando-se uma de suas principais células originárias as histórias orais, comuns a quase todos os povos do mundo. A partir do surgimento da escrita, nasce também a necessidade de uma categoria estética para o registro dessa arte e com ela o contador-narrador. A escrita não só se propõe a preservar essas histórias para as gerações seguintes, mas também traz acréscimos a essa memória. Deste modo, as narrativas não se prestam apenas à conservação das histórias do passado, mas também surgem para antecipar acontecimentos, criando imagens ficcionais do futuro, ou como agentes transformadores do olhar, tanto daquele que é orientado para eventos passados quanto para aqueles orientados para o que está para ‘vir a ser’. (Reis, 2004, p.15)

            Os contos de Murilo Rubião carregam em si essa característica antecipadora, desafiando o leitor a uma perspectiva nova, a uma transformação na maneira pela qual enxerga o mundo ao seu redor. A linguagem que utiliza em suas narrativas é fluida, a escolha de vocabulário é direta e objetiva, aproximando-se da fala cotidiana do homem moderno, sem tempo para detalhes. Seus textos também trazem sempre a marca do diálogo com a mitologia e com a Bíblia. (Vieira, 2011, p.21)¹ O objetivo desse trabalho é refletir sobre os elementos transformadores da realidade contidos no conto Marina, a intangível, bem como sobre as relações da narrativa com o texto bíblico e personagens religiosos por ela evocados.

            Assim como acontece em outras histórias de Rubião, encontra-se no conto em questão, um narrador-personagem aprisionado por atividades burocráticas, sentindo-se mera peça de uma engrenagem social que precisa funcionar em detrimento da criação artística, de quem é roubado o tempo e o espaço necessário para a existência. Identifica-se na angústia de José Ambrósio, o sentimento do próprio escritor, dividido entre seu trabalho como redator e sua criação, revelando uma fusão entre criador e criatura, ambos vivendo em um espaço que os massifica, realidade do homem urbano que busca delinear sua arte poética da única forma que lhe é possível: pela escrita.

            Embora toda a obra de Rubião surja da realidade, das ansiedades vividas pelo homem real, no cotidiano, o autor não se propõe a contos realistas. Em sua opção de escrita aparece o espaço para desconstrução do real, provocando o leitor, que acaba por vislumbrar, através do reflexo do insólito, o absurdo de sua própria condição.

            No conto citado é notável uma preocupação do autor em delimitar uma área de abrangência da narrativa, observa-se isso na forma como descreve o ambiente de trabalho do narrador-personagem, quase como se o fotografasse para mostrá-lo ao leitor. Porém, de forma diferente do que ocorre na obra de outros contistas, em Rubião identifica-se uma ‘lente’ diferenciada, algo distorcida, desfocada, que intencionalmente gera o ambiente fantástico, deslocando-o do real.

            (...) o fotógrafo ou o contista sentem necessidade de escolher e limitar uma imagem ou acontecimento que sejam significativos, que não só valham por si mesmos, mas também sejam capazes de atuar no espectador ou no leitor como uma espécie de abertura, de fermento que projete a inteligência e a sensibilidade em direção a algo que vai muito além do argumento visual ou literário contido na foto ou no conto. (Cortázar, 1974, p.151-2)



            Para uma melhor compreensão do texto proposto, no que tange aos conceitos referentes aos gêneros Realismo Mágico, Estranho e Fantástico, é importante destacar que a principal característica do Estranho é o esclarecimento do extraordinário pelo uso da racionalidade, enquanto que no Fantástico isso não é admitido, não existindo nenhuma explicação, nem dentro do contexto da realidade, nem fora dele, isso se traduzindo em grande inquietação, tanto para o leitor quanto para os personagens da história. Já a narrativa do Maravilhoso não separa o real do imaginário, uma vez que não se preocupa com a verossimilhança. O conto Maravilhoso, embora trate de situações que não se concretizariam no real, não gera estranhamento ao leitor. (Gotlib, 1985, p.22)

            Rodrigues, em O Fantástico, o define como aquilo que se refere “ao que é criado pela imaginação, o que não existe na realidade, o imaginário, o fabuloso” (Rodrigues, 1988, p.9). A causalidade mágica e a hesitação são elementos que definem esse gênero, sendo que a segunda            



(...)mostra o homem circunscrito à sua própria racionalidade, admitindo o mistério, entretanto, e com ele se debatendo. Essa hesitação que está no discurso narrativo contamina o leitor, que permanecerá, entretanto, com a sensação do fantástico predominante sobre explicações objetivas. A literatura, nesse caso, se nutre desse frágil equilíbrio que balança em favor do inverossímil e acentua-lhe a ambiguidade. (Rodrigues, 1988, p.11)

            Para Todorov, o Fantástico situa o leitor diante de uma ambiguidade; realidade ou ficção, verdade ou sonho. “É a hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis naturais, face a um acontecimento sobrenatural” (Todorov, 2007, p. 31)

            O conto Marina, a Intangível, conta a história de José Ambrósio, um jornalista frustrado que busca desesperadamente a inspiração para produzir um texto, um poema, sua missão pessoal. A dificuldade deste trabalho é ilustrada já pelo título que aponta para a impossibilidade de se alcançar Marina, um objeto de desejo inacessível, que focaliza a maldição do fazer literário, a luta insana pela palavra, o fio da meada, o veio da criação artística. Marina servindo de metáfora para a própria criação poética. Em meio ao sofrimento do narrador-personagem, surge um homenzinho de nariz largo, que se diz possuidor dos versos que o criador procura, guiando o escritor ao poema, representado por uma série de metáforas.

            No caso do conto de Rubião, o leitor se encontra diante de personagens transitando um espaço comum, pertencente ao mundo real, o insólito se revelando dentro dessa realidade, gerando estranheza e hesitação, uma vez que não existem explicações para tais fatos. O gênero Fantástico adotado pelo autor, através de uma narrativa intrigante e provocativa, abre ao leitor uma complexa rede que tangencia a realidade e a ficção, o narrador e o escritor (Rubião), o leitor e os personagens. O absurdo no conto ultrapassa a imitação do real, não tornando esse aspecto um fim em si mesmo. A narrativa de Rubião destrói a forma de apresentação do mundo exterior, negando-a e abrindo espaço para uma nova realidade, ou irrealidade. Existe toda uma negação da verdade, sem que nada ocupe o lugar dela, revelando um profundo mal-estar diante do mundo que acaba por gerar uma banalização da estranheza, trazendo nisso uma nova força de narrar. Ao criar uma narrativa plural, incorporando várias estéticas, o autor cria uma escrita singular, através da uniformidade temática e da forma como estrutura a linguagem. (Vieira, 2011, p.39)¹

            Vale salientar que de forma geral, os personagens femininos na obra de Rubião, em virtude das metamorfoses que sofrem, adquirem uma pluralidade identitária, apresentando transformações físicas ou de atitude e, através dessas mudanças, vão de encontro e rompem com representações culturais do feminino, produzindo sentidos contraditórios em torno de sua natureza, como será discutido a respeito de Marina a seguir. Observando-se a constante utilização de epígrafes bíblicas em seus contos e tendo como base as múltiplas representações contidas neste livro sagrado, bem como os inúmeros arquétipos femininos nele contidos – orbitando desde Eva, a pecadora até Maria, a mãe de Deus – é perceptível a diluição, nas personagens de Rubião e, em especial, em Marina, a Intangível, da dicotomia bem e mal. Rubião oferece à suas personagens femininas um simbolismo muito semelhante ao das mulheres míticas, abrindo mão de qualquer aspecto do real, ao colocá-las a serviço da meta-criação, como é o caso de Marina.

            Em Marina, não existe uma descrição física ou mesmo psicológica precisa, a personagem vai sendo construída através de detalhes acrescentados paulatinamente na narrativa, como pecinhas de um quebra-cabeça a ser montado pelo leitor. É perceptível o ambiente onírico do conto, no qual realidade e sonho/delírio se confluem. A personagem-fantasma ocupa seu lugar como mulher, possui um aspecto etéreo, impalpável.

           

(...) num andor forrado de seda, surgiu Marina, a Intangível, escoltada por padres sardentos e mulheres grávidas. Trazia no corpo um vestido de cetim amarfanhado, as barras sujas de lama. Na cabeça, um chapéu de feltro, bastante usado, com um adorno de pena de galinha. Os lábios excessivamente pintados, e olheiras artificiais muito negras, feitas a carvão. Empunhava na mão direita um girassol e me olhava com ternura. Por entre o vestido rasgado, entrevi suas coxas brancas, benfeitas.” (Rubião, 2012, p.109)



            Tal descrição, embora permita uma imagem concreta da personagem, gera inúmeras possibilidades de apreensão, Rubião rompendo com a tradicional apresentação identitária da mulher na literatura, construindo a personagem sob representações variadas. Marina é um corpo-imagem, uma mulher cuja matéria não define um corpo preciso, mas sim um representação onde o autor delineia novos discursos, novos contornos e novos personagens – uma matéria fluida. A personagem surge como imagem santificada, ao mesmo tempo corrompida, estátua sem vida, sem expressão e sem ação – com um corpo, mas sem essência, uma tábula rasa de projeções do autor-escritor, do autor-personagem e, por que não dizer, do próprio leitor.

            Um aspecto importante do conto a ser tratado é a questão do espelhamento da escrita. O personagem narrador sente-se impotente diante da página em branco: “Movia-me, desinquieto, na cadeira, olhando com impotência as brancas folhas de papel (...) meu cérebro seguia vazio e não abrigava nenhuma esperança” (Rubião, 2010, p.103) Conforme a narrativa progride, a angústia frente à ausência de inspiração vai sendo explicitada por palavras e expressões como esterilidade, desespero, escrever a esmo, dificuldade e outras com semelhante ideia. O narrador sendo apresentado como alguém que como o próprio Rubião, sugerindo que o personagem seja uma espécie de duplo do próprio autor, a superfície do conto refletindo a face e o trabalho do escritor-narrador-personagem, a página em branco diante de José Ambrósio sendo preenchida pelo próprio conto. (Vieira, 2011, p. 45)¹ O que se observa é uma circularidade criativa, Rubião compõe o conto, criando José Ambrósio, que na narrativa se propõe a redigir para o jornal e a escrever um poema. O final do conto encerra o ciclo criativo de ambos, uma vez que composto o poema, escrita está o conto. “Sabia, contudo que o poema da Marina estava composto, irremediavelmente composto. Feito de pétalas rasgadas e de sons estúpidos.” (Rubião, 2010, p.110)

            No conto, o narrador-escritor se sente fragilizado frente a sua criação literária, representado pela figura feminina Marina e sua característica intangibilidade, ideia reforçada pelo surgimento da personagem sendo carregada em um andor, divinizada, acima da condição humana. Deste modo, a arte é apresentada maior que o artista, evocando a imagem do trovador medieval que compõe sua canção à mulher impossível, superior. O desespero do personagem se torna perplexidade ao notar na musa divinizada, traços decadentes, rompendo sua perspectiva imaculada, a imagem se tornando uma representação tanto terrena, quanto celestial.

            A metalinguagem, de alguma forma presente em todo o conto, traz à vida personagens que são representações da própria palavra. O autor utiliza sua criação para refletir sobre a própria literatura, sobre o processo do fazer literário, questionando e repensando o ofício de escritor.

            O conto em questão, como todos os demais de Rubião, vem introduzido por uma epígrafe bíblica. Marina é a palavra-mulher evocada nessa epígrafe. “Quem é essa que vai caminhando como a aurora quando se levanta, formosa como a lua, escolhida como o sol, terrível como um exército bem ordenado?” (Cântico dos Cânticos, VI, 10) ² O texto bíblico em questão se presta a diversas possibilidades interpretativas, desde uma referência mais objetiva à favorita do rei Salomão, autor do livro, até a uma metáfora da Igreja (noiva de Cristo) – ideia veiculada pela teologia protestante. Na igreja católica, esses versos passaram a ser atribuídos à Virgem Maria e adaptados a cânticos de celebração a ela. Rubião, declaradamente agnóstico, embora pareça se utilizar dessa associação com a figura de Maria, ao conceber sua personagem sob um andor, acompanhada de uma procissão, como se faz nos cortejos católicos, dessacraliza a linguagem religiosa, desconstruindo a figura da ‘Virgem’, através de vestes e maquiagens completamente destoantes da imagem arquetípica da santa católica. Em Marina encontra-se o celeste, o terreno e o infernal fundidos numa só imagem.

            Os diálogos com referências e histórias bíblicas são vários no texto. Assim como no evangelho de João, no capitulo 1, o verbo se fez carne e habitou entre nós, a palavra se faz mulher e habita a narrativa. O autor personifica a palavra e lhe dá o poder da ressignificação, acompanhando essa palavra-criatura como palavra-criador. (Vieira, 2011, p. 63)¹ Assim como Rubião, o narrador-personagem é leitor da Bíblia, ele aguarda a chegada de Marina – a boa nova, a intangível, também chamada de Maria da Conceição (ou da concepção), também se chama José, como era José o marido da Virgem Maria, a intocada, imaculada, também intangível, cujo filho nasce sem sua participação. O outro nome do personagem faz menção a Santo Ambrósio, grande estudioso do Apocalipse e grande escritor de textos sobre Maria, reforçando a ideia do conto como uma paródia de todos esses personagens do universo religioso.

            O homenzinho com nariz largo, que surge como anunciador das boas novas remete ao anjo Gabriel, que aparece para Maria, diante dele ela se coloca como serva, assim como José Ambrósio que se ajoelha diante do homenzinho. O visitante anuncia ao personagem que o poema para Marina não precisa de máquina para ser impresso, assim como o anjo diz a Maria que ela não precisa de um homem para engendrar o Filho de Deus. A palavra, o Logos, dá origem ao Filho de Deus a ao poema. O visitante afirma: “- Os primeiros cantos são feitos de rosas despetaladas. Lembram o Paraíso antes do pecado” (Rubião, 2010, p. 108). Na narrativa bíblica o filho de Maria também é concebido sem pecado. Por outro lado, a expressão ‘rosas despetaladas’ evoca o termo ‘deflorada’, que, em geral, diz respeito à perda da virgindade, o autor introduzindo ambiguidade às ideias trabalhadas no texto, algo que lhe é recorrente.

            No cumprimento da profecia inicial - a chegada de Marina - observa-se uma atmosfera inteiramente onírica, semelhante a um episódio delirante, onde ideias opostas se cruzam e se mesclam o tempo todo, como os aspectos da descrição da personagem, os instrumentos soprados sem sons, as bocas abertas que não cantam, os padres (originalmente celibatários, aqui ilustrando a impossibilidade do escritor de fecundar a palavra) e as mulheres grávidas (que em outro contexto sugeririam contato sexual com o sexo oposto, enquanto aqui reforçam a concepção imaculada da criação, ocorrida a despeito do desejo do escritor). Tal delírio sugere a figura do escritor frente a um turbilhão de estímulos e ideias soltas, carentes de ordenação – seria a descrição do primeiro momento da criação, seguido da fase da reescrita, quando o autor precisa lapidar tudo aquilo que lhe veio em transe.

            Concluindo, pode-se considerar que todos os elementos principais do conto – narrador, demais personagens, espaço e tempo – refletem de forma metalinguística, aspectos do escritor-pessoa, ser humano em seu tempo, espaço e realidade, e do escritor-criador, em sua missão frente ao universo da Palavra, o conto funcionando como espécie de espelho, no qual o próprio Rubião se revela com um magnetismo único e um talento próprio que instiga o leitor a explorar e descobrir sua verdade particular, que se revela ao fim sempre intangível.

Referências bibliográficas:

CORTÁZAR, Julio. “Alguns aspectos do conto”. In:___. Valise de cronópio. Trad. deDavi Arrigucci Júnior. São Paulo: Perspectiva, 1974.
GOTLIB, Nádia Battela. Teoria do Conto. Série Princípios. São Paulo: Ática. 1985.PIGLIA, Ricardo. Tese sobre o conto. In:____O laboratório do escritor. São Paulo: Iluminuras, 2001.
TODOROV, Tzvetan. Introdução à Literatura Fántástica. 3 . Ed. São Paulo: Perspectiva, 2007.
RODRIGUES, Selma Calasans. O fantástico. São Paulo: Ática, 1988.
REIS, Luzia de Maria R. O que é conto. São Paulo: Brasiliense, 2004.
RUBIAO, Murilo. Obra completa. São Paulo: Companhia das Letras, 2010


Notas
¹Disponível em:
http://www.cch.unimontes.br/ppgl/admin/arquivos_upload/banco_dissertacoes/8.pdf
² In:____RUBIAO, Murilo. Obra completa. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.



Danielli Morelli




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Danielli Morelli

É Doutoranda em Letras e Literatura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Possui Mestrado em Letras e Literatura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Possui Graduação em Letras (Português e Inglês) pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2015). Possui Graduação em Psicologia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2001). Tem experiência como professora na área de Letras, com ênfase em Literatura. Tem experiência como Psicoterapeuta na área de Psicologia Clínica.