Introdução
O presente trabalho tem como objetivo analisar a relação visão-conhecimento em Aristóteles. O trabalho teve como sua inspiração original as primeiras linhas da obra aristotélica chamada de Metafísica, principalmente a relação ali estabelecida por Aristóteles entre sabedoria e visão. Defendemos que nesse assunto particular, nosso filósofo esta mais em acordo, do que em desacordo, com a tradição que o precedeu; e que esse estar de acordo se dá no caminho a ser trilhado rumo à sabedoria.
Procuraremos primeiramente ver o papel da visão na filosofia aristotélica, fazendo uma relação com os “escritos” (na verdade fragmentos e doxografias) dos filósofos da natureza, para avaliarmos os pontos de concordância e de discordância entre eles, não simplesmente de forma teórica, ou seja, nos conceitos postulados, mas principalmente de forma prática. Neste ponto de nosso trabalho, veremos a forma como Aristóteles se relacionou com o patrimônio filosófico que ele recebeu de seus predecessores, e a forma como ele os interpretava.
E então, partindo da Metafísica livro A, iremos olhar a relação estabelecida por Aristóteles entre a sabedoria (filosofia) e a visão, com ênfase na busca Metafísica, sendo que nesse ultimo ponto olharemos para as semelhanças e diferenças entre Aristóteles e seu mestre Platão.
Aristóteles e a visão
Em seu tratado sobre a alma, Aristóteles diz:
“Quanto aos outros sentidos [ele esta tratando do tato], são eles concedidos ao animal, conforme se disse anteriormente, não para lhe possibilitar sua simples existência apenas mas, ainda, para que possa essa existência ser uma existência razoável. Isso acontece com a vista...”(De anima, III, 435b 20).
Fica claro diante de tal citação a importância do sentido de visão para uma vida adequada no pensamento de Aristóteles. Essa sensação tão crucial para uma existência razoável, faz parte das faculdades da alma – que para Aristóteles é a “substância do corpo” (Abbagnano) – e está envolvida em uma complexa atividade que gera a percepção da realidade como podemos ver na fala de Aristóteles:
“A cor coloca em movimento o diáfano, o ar, por seu lado, colocando o órgão sensorial em contato com aquilo com o qual se encontra relacionado.” (De anima, II, 419 a 10) E: “em vez de se supor que a visão parte do olho e se reflete, melhor será dizer que o ar recebe uma certa alteração da forma e da cor, durante o suficiente espaço de tempo para permanecer numa só massa. Ora, sobre uma superfície lisa conseguirá ele certamente manter sua unidade , por este modo lhe sendo possível produzir a vista.” (De anima, III, 435ª 5 – 435ª 10)
Podemos inferir também a relação entre visão e vida virtuosa (ou pelo menos o processo rumo as virtudes) partindo do conceito de catharsis – purificação das emoções – de Aristóteles, que esta diretamente ligada as tragédias gregas encenadas e assistidas nos teatros.
Mas o que podemos dizer da relação visão-conhecimento? Para Aristóteles, diferente de alguns de seus predecessores, o conhecimento que alcançamos com nossa visão, é digno de credito. Isso faz Aristóteles ser visto como um empirista por alguns estudiosos, justamente por retornar ao método abandonado por Platão de observação da realidade sensível para se concluir, intuir algo. Sua filosofia, ou melhor, seus estudos, são marcados por experiências e observações relacionadas com o mundo, um exemplo disso é sua obra “História dos animais” contendo um registro de múltiplas e minuciosas observações, que vão desde o habitar natural de cada espécie, à divisão e as diferenças entre as partes dos corpos dos animais.
Além do seu exemplo pessoal, temos uma bela afirmação (na qual voltaremos) que inicia sua Metafísica que diz:
“Todos os homens, por natureza, tendem ao saber. Sinal disso é o amor pelas sensações. De fato, eles amam as sensações por si mesmas, independentemente da sua utilidade e amam, acima de todas, a sensação da visão. Com efeito, não só em vista da ação, mas mesmo sem ter nenhuma intenção de agir, nós preferimos o ver, em certo sentido, a todas as outras sensações. E o motivo está no fato de que a visão nos proporciona mais conhecimento do que todas as outras sensações e nos torna manifestas numerosas diferenças entre as coisas.” (Metafísica, A, 980ª – 25).
A colocação de Aristóteles, “a visão nos proporciona mais conhecimento”, é bem diferente da de Heráclito que rejeitava a percepção e dizia:
“Más testemunhas para o homem são os olhos e os ouvidos daqueles cuja alma é estrangeira” ([B107] Sexto Empírico, Contra os Matemáticos VII, 126).
Para não sermos injustos com Heráclito, a expressão “alma estrangeira” é obscura, e talvez estivesse fazendo um apontamento para algo específico, uma vez que também é atribuído a ele a seguinte sentença:
“Pois os olhos são testemunhas mais exatas que os ouvidos” (Políbio, Histórias, XII,).
Diferente de Heráclito – na primeira sentença a ele creditada – foi a atitude de Diógenes de Apolônia que com sua confiança na visão chegou até mesmo fazer um estudo detalhado sobre “a anatomia das veias” – que nos foi preservado por Aristóteles. Temos também como exemplo de confiança na experiência sensível Tales de Mileto, que formulou sua teoria cosmogônica provavelmente a partir de observações relacionadas com a importância da água para vários seres – conclusão defendida por Aristóteles. Mas temos também os Eleatas, entre eles Zenão que negavam o movimento que se passava diante de seus olhos. Nessa problemática sobre o movimento cabe aqui fazer menção a resposta bem elaborada proposta por Aristóteles que procura conciliar o conhecimento intelectivo (nóesis) e o conhecimento sensível (aisthesis), e que recusa ser simplista como no caso de Zenão (negar um dos conhecimentos). E é justamente essa recusa em ser simplista que o colocará rumo a suas pesquisas Metafísicas, elaborando visões diferentes de ser (ato/potência), movimentos (acidental/essencial), Primeiro Motor etc.
Vemos com esses exemplos que Aristóteles não apenas discordou (quando foi necessário), mas concordou e preservou algo do patrimônio que o antecedeu. Na verdade se aproximarmos um pouco mais de Aristóteles, veremos que nosso filósofo propõe aquilo que ele constatou em seus predecessores em relação ao olhar e o saber. É o olhar que “faz” o filósofo. Ainda que errando, eles não deixaram de pensar, refletir sobre aquilo que estava se passando diante de seus olhos, mesmo que esses pensamentos chegassem ao absurdo, como na ausência de movimento. Nessa prática pré-socrática vemos a prova histórica do enunciado de Aristóteles registrado nas primeiras linhas da Metafísica.
Visão e Conhecimento
Como vimos acima, Aristóteles começa sua obra que hoje conhecemos por Metafísica com a seguinte colocação:
“Todos os homens, por natureza, tendem ao saber. Sinal disso é o amor pelas sensações. De fato, eles amam as sensações por si mesmas, independentemente da sua utilidade e amam, acima de todas, a sensação da visão. Com efeito, não só em vista da ação, mas mesmo sem ter nenhuma intenção de agir, nós preferimos o ver, em certo sentido, a todas as outras sensações. E o motivo está no fato de que a visão nos proporciona mais conhecimento do que todas as outras sensações e nos torna manifestas numerosas diferenças entre as coisas.” (Metafísica, A, 980ª – 25).
Ao olharmos para a citação acima, é interessante perceber como nosso filósofo liga saber e visão. Todos os homens tendem ao saber, por isso amam as sensações e entre essas a visão, uma vez que ela “proporciona mais conhecimento”, e manifesta várias diferenças entre as coisas. No livro segundo da Metafísica, Aristóteles estabelece uma relação semelhante a essa ao dizer:
“Assim como os olhos dos morcegos reagem diante da luz do dia, assim também a inteligência que está em nossa alma se comporta diante das coisas que, por sua natureza, são as mais evidentes” (Metafísica a 1 993b 9-10).
Novamente temos essa relação da visão com o saber. A inteligência é como os “olhos da alma”, que reagem diante de certas coisas, como os olhos dos morcegos reagem a luz do dia. Giovanni Reale, em seu comentário da Metafísica, afirma que essa superioridade da visão em relação as demais sensações é algo característico da espiritualidade dos gregos, diferente da espiritualidade hebraica que dá a primazia para ouvir a Voz, ou a Palavra de Deus.
Existe um certo debate relacionado ao que Aristóteles tinha em mente ao afirmar que a visão proporciona mais conhecimento que as demais sensações e torna manifesta numerosas diferenças. Alguns estudiosos vêem nessa variedade de diferenças a multiplicidade de cores – branco, preto, cinza, amarelo e vermelho e etc. – algo que não ocorre com quente e frio, úmido e seco por exemplo. Já outros vêem diferenças de grandezas e figuras – grande, pequeno, redondo, quadrado etc. algo que estaria de acordo com a citação de Aristóteles que diz:
“A faculdade da visão revela numerosas diferenças de todos os tipos” (De Sensu, citado por Reale).
Queremos nesse momento focar não nas “numerosas diferenças”, mas sim na capacidade da visão nos proporcionar mais conhecimento.
É significativo o fato de Aristóteles iniciar seu tratado sobre a Metafísica, a ciência que esta acima das demais, aquela que pode até não ter muita utilidade, mas é a mais sublime de todas as ciências, falando de visão e saber. Acreditamos que aqui Aristóteles continua percorrendo o mesmo caminho que filósofos e poetas percorreram, o do olhar. Ele diz:
“Ora, quem experimenta uma sensação de dúvida e de admiração reconhece que não sabe; e é por isso que também aquele que ama o mito é, de certo modo, filósofo.” (Metafísica, A, 982b 15-25, pág. 11)
Qual é essa admiração? Qual é essa dúvida? É uma dúvida em relação ao mundo, e uma admiração diante do mundo. O filósofo e o poeta compartilham de certa forma de um olhar comum. É um olhar que vê o mundo e pergunta por uma possível explicação, e assim temos o mito e a filosofia.
“De fato os homens começaram a filosofar, agora como na origem, por causa da admiração, na medida em que, inicialmente ficavam perplexos diante das dificuldades mais simples; em seguida, progredindo pouco a pouco, chegaram a enfrentar problemas sempre maiores.” (Metafísica, A, 982b 15-25, pág. 11)
Esse pensamento já havia sido formulado por Platão como segue:
“É próprio do filósofo isso (...) ser cheio de admiração; e a filosofia não tem outro princípio além desse.” (Teeteto, citado por Reale)
Por que o mundo causa admiração? A resposta é que o mundo é Kosmos. A palavra vem de um verbo grego que significa ordenar, arranjar, assim o Kosmos (mundo) é algo ordenado. Mas Kosmos também esta relacionado a adorno, embelezamento (daí temos a palavra cosmético), assim o Kosmos (mundo) é algo belo. O mundo para o qual o poeta e o filósofo lançaram seus olhos, era uma realidade ordenada e bela, e isso exigia uma explicação. E eles tentaram formula uma. O que ordena o mundo é a água dizia Tales, é o ápeiron dizia Anaximandro; o mundo é ordenado por causa dos números, falavam os pitagóricos. Eram várias propostas, mas o que era comum a todos, era o fato de que o mundo, a realidade observada precisava ser explicada.
Assim vemos que a visão nos conduz a sabedoria colocando diante de nós um mundo que nos enche de encanto e admiração nos forçando assim a buscar uma explicação. Esse conduzir a sabedoria não ocorre em uma olhada, como Aristóteles diz, é dos problemas mais simples para os problemas mais complexos. A considerada por alguns, a maior questão Metafísica é justamente uma constatação do olhar: Por que existe algo e não nada?
Antes de prosseguirmos para nosso próximo ponto cabe aqui uma explicação. Ao afirmarmos a relação sabedoria e visão, não estamos defendendo que o único conhecimento que adquirimos é o do olhar, ou que a mera observação faz o filósofo. Antes o que propomos é que a visão conduz ao raciocínio, a reflexão e etc. Aristóteles é claro em demonstrar no decorrer de sua Metafísica que embora todos os animais possuam sensações, nem todos possuem memória, e por isso nem todos possuem a inteligência. Como nos diz Maria do Carmo: Aristóteles
“estabelece uma hierarquia, uma escala ascendente entre os diversos tipos de conhecimento. Em primeiro lugar, no nível inferior, temos a sensação, comum aos homens e aos animais. As sensações, acumuladas na memória, originam a experiência (empiria). Por isso, só os animais mais dotados de memória são capazes de aprender. Da repetição de experiência se origina o conhecimento prático (...) [que] Aristóteles chama de “arte”(tekné). Acima da arte, encontramos a ciência teórica (epistheme), que busca conhecer as causas.” (Aristóteles, pág. 40)
Metafísica e Olhar
Como procuramos pontuar acima, o caminho da filosofia desde sua origem foi: visão, admiração, reflexão. Começando por questões chamadas “simples” (perguntas que ainda hoje inquietam o ser humano) como a ordem do Kosmos, para problemas mais complexos como movimento e mudança, os primeiros pensadores deram seus primeiros passos, em direção a verdade (epistheme), concordando ou não com seus antecessores e contemporâneos. Iremos agora olhar as relações entre Aristóteles e seu mestre Platão relacionadas com esse caminho em direção a epistheme, tendo o diálogo Fedro de Platão como nosso referencial.
O diálogo Fedro foi escolhido porque é nítida as semelhanças nessa “dialética ascendente” proposta por Platão e Aristóteles. Ambos propõem uma ascendência rumo ao conhecimento, mas enquanto para Aristóteles esse conhecimento se encontra aqui no chamado mundo sensível, para Platão esse conhecimento esta apenas no mundo inteligível, no mundo das idéias. Ou seja, embora eles proponham o mesmo caminho – ascendência – seus destinos são totalmente opostos.
Como vimos em Aristóteles esse movimento se inicia com a visão, o mesmo se dá com Platão. Ele diz:
“Depois de tudo o que dissemos, chegamos à quarta espécie de delírio: ocorre quando alguém neste mundo vê a beleza. Recorda-se este da beleza verdadeira, recebe asas e deseja voar para o alto.” (Fedro, pág. 86)
Aqui temos uma semelhança em ambos os pensadores a ascendência se dá por meio da visão. Mas enquanto em Aristóteles a visão gera a admiração reflexiva que procura por respostas para aquilo que contempla, em Platão a visão da beleza (somente essa Idéia produz tal impacto) gera “recordação.” Recordação de uma existência pré-terrena na corte dos bem-aventurados, onde alguns contemplavam as Idéias Puras, das quais a beleza era aquela que mais brilhava. Por isso apesar da prisão terrena da alma humana (o corpo), ela ainda conseguem alcança –lá e lhe falar, pois
“somente a beleza dá-nos esta ventura de ser a coisa mais perceptível e arrebatadora.” (Fedro, pág. 87)
Um outro ponto em comum que gostaríamos de focar é o tom de sublimidade. Apesar de Aristóteles ter várias criticas as idéias de Platão sobre o mundo das Idéias e etc., e assim, não propondo a ascensão a “morada dos deuses”, ainda é possível encontramos nele esse tom de sublimidade ao dizer:
“Todas as outras ciências serão mais necessárias do que esta, mas nenhuma lhe será superiro” [pois] “ Esta, de fato, entre todas, é a [ciência] mais divina e mais digna de honra”. (Metafísica, A, 983ª 5-10)
Conclusão
Ao iniciarmos nossa pesquisa sobre olhar e sabedoria, acreditávamos que essa relação estabelecida por Aristóteles era na verdade não algo elaborado por ele, mas uma reafirmação daquilo que ele constatou em seus predecessores. Por mais que ele tenha discordado em muitas coisas deles, ele permaneceu no caminho trilhado por ele, o da observação como ponto de partida para a reflexão. Somado a essa constatação, temos sua interpretação deles ao afirmar que os filósofos começaram a filosofar devido a admiração. E ele, assim como eles, deixou-se admirar. Ele olhou o Kosmos, seu movimento, sua permanência, sua mutação e procurou responder a realidade que estava diante dele.
Diante daquilo que vimos, acreditamos que Aristóteles é um bom exemplo a ser seguido nesses nossos dias, como resposta a pergunta: O que é ser filósofo? Já que a admiração quase não existe mais, dúvida é suprimida e as questões relacionadas a mais divina de todas as ciências são banalizadas.
O seu muito obrigado por nos seguir até aqui.
Bibliografia
REALI, Giovanni. Aristóteles, Metafísica
Vol. II, III. São Paulo: Edições Loyola, 2002.
FARIA, Maria do Carmo Bettencourt. Aristóteles, A Plenitude Como Horizonte Do Ser. São Paulo: Editora Moderna, 1994.
BARNES, Jonathan. Filósofos Pré-Socráticos
. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
ARISTÓTELES. Da alma
. Lisboa/ Portugal: edições 70 LDA.
PLATÃO. Fedro. São Paulo: Editora Maria Claret Ltda, 2007.