Todas as outras ciências serão mais necessárias do que esta,
mas nenhuma lhe será superior.
Metafísica, A2, 983a 10.
Introdução
“Todos os homens, por natureza, tendem ao saber”, é assim que Aristóteles inicia uma de suas mais importantes obras, a Metafísica. Porém, como afirma Michelet “[...] el saber no tiene, em consecuencia, otro objeto que el saber mismo” (MICHELET, p. 166,). Tal ciência, é uma ciência contemplativa, é por sua vez “la más noble y la más excelente de todas” (MICHELET, p. 167); busca os conhecimentos mais universais.
O presente trabalho tem como objetivo fazer uma breve explanação a cerca das concepções de Aristóteles contidas na obra em questão, focando especialmente a busca da substância supra-sensível.
Tratando-se de uma obra ampla e profunda, na medida em que propõe a busca e a compreensão das causas e dos princípios primeiros, tentaremos responder, na medida do possível, questões como: 1) Compete a uma só ciência, ou não, examinar todas as espécies de causas? 2)Todas as substâncias são objetos de uma ciência apenas, ou de várias? 3) Existem apenas substâncias sensíveis, ou existem outros tipos de substâncias? 4) Tal ciência abrange a investigação apenas e tão somente das substâncias ou estende-se à suas propriedades? 5) Existe fora da matéria um princípio independente? Há apenas um princípio, existe apenas um motor? 6) Os princípios são universais? E por fim, 7) Os princípios existem apenas em potência, ou em ato?
De maneira alguma este trabalho pretende limitar as múltiplas interpretações possíveis da obra aristotélica, tampouco apresentar as questões de maneira simplista.
Vale destacar que a obra (Metafísica) é considerada pelo autor uma ciência teorética, que busca o saber em si mesmo por buscar as causas primeiras, é a mais suprema, “nem se deve pensar que exista outra ciência mais digna de honra. Esta, de fato, entre todas, é a mais divina e mais digna de honra” (Metafísica, A 2, 982 a, 5 ) ainda: “Todas as outras ciências serão mais necessárias do que esta, mas nenhuma lhe será superior” (Metafísica, A 2, 982 a, 10 ). Justificar-se-á tal questão com mais propriedade ao longo deste trabalho.
As argumentações deste trabalho estão divididas da seguinte forma: interpretação do termo metafísica; explicação do termo grego; as definições de metafísica; divisão das ciências; teoria das quatro causas e por fim, a demonstração da existência da substância supra-sensível e o primeiro motor.
Interpretação do termo metafísica
Uma questão preliminar mostra-se importante para começarmos a adentrar na obra: a interpretação do título. Andronico de Rodes foi o editor das obras de escola de Aristóteles. Os livros da filosofia primeira vinham depois dos livros da física, esta é uma das possíveis razões do título.
O título foi de feliz coincidência na medida em que o sentido de “meta” é “além” ou “acima” da física, que indica o próprio conteúdo, a saber, a pesquisa sobre o ser supra-sensível.
O termo “metafísica” acabou substituindo a originária fórmula aristotélica “filosofia primeira”.
Os textos de Aristóteles justificam fartamente a utilização desse termo tanto como pelo fato de se tratar de uma ciência que se põe acima das coisas físicas, como pelo fato de que aprendemos primeiro sobre a física; havendo, portanto, uma ordem hierárquica. A metafísica seria uma ciência que vem depois da física, de acordo com a ordem que adquirimos conhecimentos. Assim sendo, Metafísica pode significar as duas coisas.
A questão do termo: substância – ousia
A língua grega é fortemente sintética, mas as línguas modernas, no entanto, são muito analíticas, por isso há uma grande dificuldade em traduzir os termos, pois as “línguas modernas cobrem apenas parcialmente a área semântica coberta pelos originais termos gregos” (REALE, p. 92, 2001).
Segundo Giovanni Reale (p. 92, 2001), a tradução só é correta se “reproduz todas as suas valências conceituais”, ou seja, se cobre a mesma área semântica do termo original.
No caso da língua portuguesa e italiana, elas conseguem cobrir quase que totalmente a área semântica de ousia, visto que o termo substância tem ampla utilização na linguagem comum, o que não acontece com as outras línguas modernas.
Giovanni Reale diz ainda (p. 92, 2001) que a única falha do termo substância é que ele não tem ligações com termo Ser, enquanto que no grego tem, “deriva de ousa, particípio do verbo einai”.
O termo substância, na linguagem comum, pode ser entendido como: 1) elemento/ componente que constitui a coisa, aquilo de que a coisa é feita; 2) substância como essência, núcleo principal, algo determinante que caracteriza o objeto; e 3) indica diferentes realidades individuais e particulares. Portanto, o termo substância é considerado adequado e satisfatório para a tradução de ousia.
Conceito e finalidade
A metafísica é repleta de termos e conceitos amplos, o próprio título assim o é. Ao longo dos catorze livros, são apresentados quatro conceitos distintos para metafísica (filosofia primeira).
A primeira definição dada para metafísica a caracteriza como ciência que indaga as causas e os princípios primeiros/ supremos. Para uma melhor compreensão desta primeira definição recorrer-se-á a alguns exemplos.
Tome-se como exemplo um eclipse lunar. Todos são capazes de saber que ocorre um eclipse, “para esta forma de saber basta a percepção sensível [...]” (REALE, p. 36, 2001). Todavia, poucos são capazes de saber o porquê ocorre o eclipse; “para esta forma de saber não bastam sensações e experiências, mas se impõem a intervenção do raciocínio e a superação do plano puramente empírico” (REALE, p. 36, 2001).
Ou ainda, com as próprias palavras de Aristóteles:
[O] ato de julgar que determinado remédio fez bem a Cálias, que sofria de certa enfermidade, e que também fez bem a Sócrates e a muitos indivíduos, é próprio da experiência; ao contrario, o ato de julgar que a todos esses indivíduos, reduzidos à unidade segundo a espécie, que padeciam de certa enfermidade, determinado remédio fez bem [...] é próprio da arte[1] (METAFÍSICA, A 1 981 a 8 - 14)
“Portanto, quem possui a ciência não só sabe que as coisas são de determinado modo, mas sabe, particularmente, por quê são daquele modo determinado e não de outro”. (REALE, p. 38, 2001).
Causa ou princípio[2] de algo é o porquê desta coisa, “podem ser definidos como as condições ou os fundamentos das coisas [...]” (REALE, p. 38, 2001).
Resta ainda dizer a respeito dos adjetivos “primeiros” e “supremos”. A ciência da “coisa” não é necessariamente uma “ciência metafísica”. Aquela possui conhecimento das causas e princípios de qualquer coisa, e esta detém o conhecimento de determinadas causas e determinados princípios, a saber, os “supremos” e os “primeiros”.
A metafísica busca compreender “as causas e os princípios que condicionam toda a realidade, ou seja, as causas e os princípios que fundam os seres em sua totalidade” (REALE, p. 39, 2001).
A segunda definição para metafísica seria a indagação do ser enquanto ser (“ito on e on), Aristóteles escreve no livro Gamma:
Há uma ciência que considera o ser enquanto ser e as propriedades que lhe cabem enquanto tal. Ela não se identifica com nenhuma das ciências particulares: com efeito, nenhuma das outras ciências considera o ser enquanto ser universal; com efeito, depois de delimitar uma parte dele, cada uma estuda as características desta parte.
Esta definição é identificada pela busca do porquê do ser em sua completude.
A ciência do ser é a ciência das causas e princípios supremos do ser.
Aristóteles supera as concepções dos eliáticas afirmando que o ser tem múltiplos significados. Separa então, em quatro grupos de significados do ser:
1) O ser como categorias (ser em si):
- Supremos gêneros do ser:
* substância[3] / essência
* qualidade
* quantidade
* relação
* ação/ agir
* paixão/ padecer
* onde/ lugar
* quando/ tempo
* ter
* jazer
2) O ser como ato e potência:
- Todos os seres são potência e ato (simultaneamente), o movimento existe porque as coisas tem essa potencialidade de ser ato e potência.
3) O ser como acidente:
- Ser causal, fortuito.
4) O ser como verdadeiro:
- Pensar o ser como se conjuga no mundo real, o ser como ele é[4] .
A terceira definição é a indagação da substância (teoria da substância). Como já mencionado, o ser tem múltiplos significados e a substancia é o principal deles, e ao mesmo tempo o fundamento dos outros significados. Seria, portanto, a Metafísica a ciência das causas e dos princípios da substância.
Os naturalistas consideram que os princípios substanciais são os elementos materiais, a substância seria igual a matéria; já para Platão, os princípios substanciais são as formas; e outros acreditavam que os princípios substanciais eram as coisas concretas.
Ao analisar tais concepções Aristóteles e afirma com relação aos primeiros que a matéria é potencialidade indeterminada, descartando esta possibilidade. Ao segundo afirma que a forma não pode existir sem a matéria. A substância é um “sínolo”, uma junção de matéria e forma. Aos últimos, afirma que a “coisa concreta” é a substância segunda, já que a matéria é potencia, tem a capacidade de assumir formas[5] .
A quarta e última definição refere-se à metafísica como ciência teológica, que indaga Deus e a substancia supra-sensível, propõem-se a busca da substancia supra-sensível.
Divisão das ciências
Aristóteles divide as ciências em três grupos, a saber: ciências teoréticas, ciências práticas, ciências poiéticas. A primeira busca o saber em si mesma, o saber como um fim em si mesmo; a segunda busca o saber para alcançar a perfeição moral (como a política e a ética) o saber como um meio; e a terceira busca produzir algo.
Para Aristóteles a verdadeira ciência é a ciência teorética, é uma ciência contemplativa, que busca conhecer o eterno e imóvel, objetos estes que não compete à física estudá-los, já que esta se ocupa de seres em movimento. Sendo assim, a filosofia primeira refere-se às realidades que são imóveis.
Teoria das quatro causas[6]
Passa-se agora, depois de esclarecidas as definições de Metafísica, para a caracterização das causas primeiras, que são: 1) causa formal; 2) causa material; 3) causa eficiente; 4) causa final.
A primeira causa refere-se a forma ou essência; a segunda causa à matéria; juntas (causa formal e material) formam a realidade (o real estático), o já identificado, “sínolo”.
A terceira, causa eficiente ou motora, é o que permite que algo se transforme, é aquilo de que provêm a mudança e o movimento das coisas. A quarta, causa final, constitui o fim, a finalidade, a função, o objetivo das coisas e das ações. A terceira e quarta causas são causas dinâmicas, enquanto que a primeira e segunda são estáticas.
“[O] devir [o gerar, o corromper] das coisas, portanto, exige essas quatro causas” (REALE, p. 54, 2001). Vale destacar que apenas as quatro causas não explicam o devir. As causas das coisas são: as quatro causas, os movimentos do sol e dos céus[7] e Deus (causa eficiente - final).
A substância supra-sensível e o primeiro motor:
Demonstração da existência da substância supra-sensível
Para iniciar a busca da substância supra-sensível necessário é que se responda a seguinte indagação: Que substâncias existem? Aristóteles responde brilhantemente a essa questão dizendo que existem três tipos de substâncias, hierarquicamente organizadas,duas físicas e uma imóvel, que são: 1) substâncias sensíveis que nascem e perecem; 2) substancias sensíveis incorruptíveis[8] . 3) Necessariamente existe uma substância imóvel, eterna e transcendente ao sensível.
As duas primeiras substâncias são sensíveis, a primeira corruptível, a segunda incorruptível, a terceira, a substância supra-sensível, é, ao invés, “forma pura absolutamente privada de matéria” (REALE, p. 112, 2001).
As substâncias são as realidades primeiras, pois todos os modos de ser dependem da substância.
Segundo Aristóteles, o tempo e o movimento são incorruptíveis. O tempo não foi gerado, é eterno; não há um antes nem um depois.
O tempo é uma determinação do movimento, que por sua vez, também é eterno. Para explicar o tempo, Aristóteles recorre a dois conceitos: Movimento e Alma. O tempo é uma percepção da alma; o movimento tem como característica a continuidade, e a alma pode captar essa quantidade de movimento, ela capta o que é antes e o que é depois. O tempo pressupõe, necessariamente, a alma, que é princípio espiritual numerante (capaz de contar). Portanto, se não houvesse uma alma capaz de contar os movimentos, perceber o tempo, o próprio tempo não existiria, seria um eterno presente, uma eterna sucessão de agora.
Quais condições fazem do tempo e do movimento eternos? Como deve ser o princípio de um movimento eterno? Para tanto, o próprio princípio tem de ser eterno, se o movimento é eterno, eterno também deve ser a sua causa. Este princípio também deve ser imóvel, pois só o imóvel pode ser causa absoluta do móvel, pois se não fosse assim, esta mesma causa precisaria de uma outra causa motora, e esta outra, etc., pois tudo que se move é movido por algo, por isso o primeiro motor deve ser imóvel. Deve ser também completamente privado de potencialidade, ou seja, ato puro. “Este é o Movente imóvel, que é substância supra-sensível que estávamos buscando” (REALE, p.114, 2001).
A causalidade do primeiro motor imóvel é, propriamente e primariamente, do tipo final, visto que ele atrai, e atrai como o que é amado.
Mas de que modo o primeiro motor pode mover permanecendo completamente imóvel? A inteligência move a inteligência sem se mover. Aristóteles diz que “o Primeiro Movente move sem se mover, assim como o objeto de amor atrai o amante (ev eromenon kinei), enquanto que todas as outras coisas movem sendo movidas” (REALE, p. 114, 2001). O objeto do desejo e da inteligência atraem nossa vontade sem nunca se moverem, e o objeto do desejo é sempre bom e belo,
“[...] o objeto do desejo é o que se mostra como belo e o objeto primeiro da vontade racional é o que é objetivamente belo: e nós desejamos algo porque acreditamos ser belo e não, ao contrário, acreditamos ser belo porque o desejamos; de fato, o pensamento é o princípio da vontade racional”. (METAFÍSICA, A 7, 1072 a 25)
O primeiro motor, portanto é Deus, ou, nas palavras do próprio Aristóteles:
“touto gar o Theov (isto, portanto, é Deus)”. Se Deus é eterno, imóvel, ato puro, privado de potencialidade, privado de matéria, é vida espiritual, pensamento de pensamento, não tem grandeza, é sem partes, indivisível, impassível e inalterável[9] ; em que pensa Deus? “é evidente que [...] pensa o que é mais divino e mais digno de honra [...]” (METAFÍSICA, L 9, 1074b 25).
Deus pensa no mais excelente, a si mesmo, pois a coisa mais excelente é o próprio Deus, é uma atividade contemplativa de si mesmo, “a Inteligência divina é o que há de mais excelente, ela pensa a si mesma e seu pensamento é pensamento de pensamento” (METAFÍSICA, L9, 1074b 35) e que pensa a si por toda a eternidade.
Considerações finais
Ao final desta breve exposição a cerca da Metafísica aristotélica, podemos afirmar que a “Filosofia Primeira” é uma ciência superior a todas as outras, cabendo a ela examinar os princípios e as causas primeiras e supremas. A ciência suprema é aquela que conhece profundamente as causas do ser.
As investigações para a obtenção dos conhecimentos universais também incluem seus pormenores, no caso do “ser enquanto ser” incluem a pesquisa de suas propriedades (os gêneros).
Como foi demonstrado, existe fora da matéria um princípio independente: Deus. Este é privado de matéria e de potencialidade, ato puro, movente imóvel.
Os princípios são universais, se existissem apenas como indivíduos não poderiam ser apreendidos pela ciência (Metafísica). Deus, portanto, seria o primeiro motor eterno e imóvel, ato puro, pensamento de pensamento que eternamente pensa-se a si mesmo, sem partes e indivisível, impassível e inalterável.
Existem três tipos de substâncias, hierarquicamente organizadas, sendo duas físicas e uma imóvel, cabendo a Metafísica estudar a substância imóvel.
Resta-nos ainda a questão: Existe apenas uma substância supra-sensível? Apenas um motor?
Aristóteles considerou que Deus não bastava para mover todas as outras esferas das quais o céu era constituído, sendo assim, Deus seria o primeiro movente imóvel que “move diretamente o primeiro móvel” (REALE, 117, 2001), mas existem muitas outras esferas, hierarquizadas, que se movem em diferentes movimentos. “Quem move todas essas esferas e causa os diferentes movimentos?” Elas poderiam mover-se a partir do movimento do céu, ou poderiam mover-se a partir de outras substâncias supra-sensíveis.
Aristóteles aceita, ao que parece, a segunda opção, introduzindo a multiplicidade dos moventes (como substâncias supra-sensíveis), “capazes de mover de modo análogo a Deus” (REALE, 117, 2001), como causas finais.
Aristóteles estabelece cinqüenta e cinco o número de esferas (aceitando a diminuição para quarenta e sete esferas). Concebe, portanto, outras substâncias imóveis, atos puros, porém, hierarquicamente inferiores ao primeiro motor.
Referências bibliográficas
ABBAGNANO, Nicola. História da Filosofia. Lisboa: Presença, volume 1, 1991.
ARISTÓTELES, In: Metafísica. REALE, Giovanni (org). Tradução: Marcelo Perine. São Paulo: Loyola, 2001.
ARISTÓTELES, Da alma. Lisboa: Edições 70, 19--.
MICHELET, Karl Ludwig. Examen critico de la metafisica de aristoteles. Buenos Aires: IMAM, 1946.
REALE, Giovanni. Ensaio Introdutório. In: REALE, Giovanni. Metafísica. Tradução: Marcelo Perine. São Paulo: Loyola, 2001.
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NOTAS
[1] A arte entendida como habilidade teórica, habilidade de pensamento.
[2]Entendidos muitas vezes por Aristóteles como sinônimos.
[3]Substância como categoria independente.
[4]O ser verdadeiro em oposição ao ser fantástico. Fantasia: juntar coisas na mente que não se juntam no real.
[5]A forma seria o ato. A substância primeira seria a forma unida à matéria, de forma mais abstrata; a substância segunda seria algo mais concreto.
[6]Causa do mundo, do devir.
[7]Tipo de causa motoras ou eficientes.
[8]Céus, planetas e estrelas, feitos de matéria incorruptível: o éter.
[9]Esses são os doze atributos de Deus.<