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UM ÓRFÃO NA ILHA DESERTA: A CRÍTICA DE MAIMÔNIDES A ARISTÓTELES QUANTO À ETERNIDADE DO MUNDO


Cecilia Cintra Cavaleiro de Macedo


Doutora em Ciências da Religião, Mestre em Filosofia. Pesquisadora do Grupo de Filosofia Medieval Latina e Filosofia Medieval em Árabe Falsafa – PUCSP/CNPq.



Moshe ben Maimon, conhecido como Maimônides (1135-1204) foi um pensador judeu preocupado fundamentalmente com a compreensão de sua religião. Nascido na Espanha islâmica (Al-Andalus), durante sua adolescência sua família é obrigada a migrar para Fez após a tomada do poder pelos Almôadas[1] e, em 1168 segue para o Cairo. Estudou Medicina, vindo a se tornar médico do vizir Al-Fadil, homem de confiança de Saladino. Maimônides foi educado em ambiente marcado pelas discussões teológicas e sobre jurisprudência judaica – uma vez que consta que seu pai fôra um dedicado estudioso do Talmud, tendo sido até mesmo juiz – e suas idéias seguem, em linhas gerais, a defesa das concepções majoritárias no judaísmo rabínico de sua época. Mas, ao contrário de um fideísta ou ingênuo defensor da literalidade das Escrituras, Maimônides lança mão, a fim de atingir seus objetivos, de sólida argumentação racional construída a partir dos grandes nomes da Filosofia, cujas obras conhecia profundamente, e dos filósofos islâmicos de seu tempo. Morreu em Fostat e foi enterrado em Tiberíades (Israel).

Entre as obras[2] voltadas à religião e a ética, tendo por base a produção talmúdica, como seus “Comentários à Mishná” e “Mishné Torah”, surge sua obra principal, pela qual garante seu lugar na história da Filosofia: o “Guia para os Perplexos”. Escrito originariamente em árabe, sob o título de Dalalat al ‘airin, e traduzido ao hebraico como Moreh Ha-Nevuchim, o Guia compõe-se de três partes. A primeira consiste numa exposição dos “segredos” (sodot) contidos nos livros dos Profetas, a partir de uma exegese filológica de certos termos contidos na Bíblia, bem como uma profunda discussão sobre os atributos de Deus[3] e uma crítica aos métodos do Kalam[4] . A segunda parte do Guia, que é a que nos interessa propriamente aqui, dedica-se a estabelecer relações entre a Filosofia e os conteúdos das Escrituras, especialmente quanto à questão dos seres existentes e da criação do mundo, apontando suas proximidades e distâncias; desta parte consta também uma discussão sobre a questão da Profecia. A terceira parte do Guia discute questões sobre as disciplinas místicas judaicas (Maaseh Bereshit e Maaseh Merkabah), trata de questões como a matéria, o mal, a Lei de Deus e a conduta do homem.

O objetivo principal de Maimônides, conforme suas próprias palavras, era o de: “Esclarecer os pontos obscuros da Bíblia e expor explicitamente o verdadeiro sentido de seus fundamentos, encobertos à inteligência do povo” (Guia para os perplexos, parte II, cap. 2[5] ). Conforme Maimônides, a verdade Revelada e a especulação filosófica só parecem diametralmente opostas a olhos despreparados e mentes ignorantes, posto que, muitas das conclusões da filosofia somente vêm a reforçar a Verdade Revelada: “Assim, ao nos habituarmos com as opiniões dos ignorantes em Filosofia, inclinamo-nos a considerar estas opiniões filosóficas como estranhas à nossa religião (...) Mas, na verdade, não é assim” (Guia, II, 11).

Muito embora acentue as semelhanças entre as concepções filosóficas, especialmente aquelas atribuídas a Aristóteles e aos peripatéticos islâmicos, e a revelação bíblica, estas semelhanças chegam a um limite na questão da Criação. Maimônides insiste em identificar pontos de concordância entre filosofia e revelação em questões como: a aceitação do modelo de esferas, o fato de que as esferas celestes sejam dotadas de alma e inteligência, o mundo governado por influências celestes, os corpos terrestres compostos de uma única e mesma matéria, sujeita à geração e à corrupção, o entendimento do processo de emanação ou processão como “influência” (equivalente do hebraico Shefa), e outras questões, tal como formuladas pelos filósofos, uma vez que possibilitariam o encontro de afirmações paralelas no texto bíblico, ainda que ali apareçam sob uma outra linguagem. Mas, no que se refere à origem primeira do Universo, estabelece a diferença fundamental e radical entre as duas posições.

Vale ressaltar aqui que as concepções atribuídas a Aristóteles não são necessariamente aquelas que entendemos hoje como sendo as idéias do Estagirita. A atribuição medieval de obras de caráter nitidamente neoplatônico como a Teologia e o Livro do Puro Bem (que passa á latinidade como Liber de Causis) a Aristóteles, bem como de materiais apócrifos, como as cartas a Alexandre, fizeram com que os primeiros Falasifa (filósofos islâmicos) tentassem de todas as maneiras possíveis, uma compatibilização entre o conteúdo destas obras e as idéias expostas na Metafísica. Portanto, não há o que estranhar no fato de que Maimônides situa Aristóteles num mundo proveniente de um modelo de emanações sucessivas, povoado de Inteligências/Anjos, especialmente ao considerarmos que uma de suas principais fontes é nomeadamente Al-Farabi e outra delas, ainda que não nomeada, deve ter sido Ibn Sina (Avicena).

Quanto à questão da Criação do Mundo, Maimônides expõe as três teorias concorrentes de seu tempo: aquela derivada da Lei de Moisés, que defende a criação ex-nihilo; a Platônica, que apresenta a preexistência da matéria; e a Aristotélica, que opta pela eternidade do Universo, uma vez que matéria, tempo e movimento seriam eternos. Afirma ser a teoria aristotélica, a única merecedora de consideração (Guia, II, 14). O filósofo judeu apresenta oito métodos (argumentos) utilizados por Aristóteles para a defesa da eternidade do mundo e, a seguir, passa a refutá-los, visando estabelecer que a teoria da Criação ex-nihilo, é, no mínimo, tão plausível e crível quanto qualquer outra. Maimônides divide sua refutação dos argumentos aristotélicos em duas partes, uma vez que os primeiros métodos referem-se ao criado e os últimos diretamente a Deus e sua atividade. Os primeiros métodos referem-se a: 1º.) sustentação da eternidade do tempo e do movimento; 2º.) sustentação da eternidade da substância primeira comum aos quatro elementos; 3º.) sustentação da eternidade da substância que compõe as esferas celestes, uma vez que não é sujeita à destruição; 4º.) Toda produção e mudança é precedida, no tempo, pela sua possibilidade. A existência de algo deve ser ou necessária, ou possível, ou impossível. Portanto, se o universo é necessário, sempre existiu; se é impossível, nunca existiu; se é possível, contudo, é preciso que preexista um substrato de sua possibilidade. A partir do quinto método, os argumentos se referem a Deus, questionando especialmente a atividade/inatividade do primeiro agente.

Não é nossa intenção aqui a exposição detalhada da crítica de Maimônides. Pelo contrário, visamos concentrar a exposição nos métodos referentes à criação e, especificamente em um dos argumentos utilizados por Maimônides para sua crítica às concepções Aristotélicas. Este argumento visa derrubar em especial o quarto método exposto acima, mas, por se tratar de um argumento lógico, acaba por questionar todos os quatro e, também o quinto, que consiste na idéia de que,

Se Deus produziu o Universo do Nada, Ele deve ter sido um agente potencial antes de ser agente em ato, e deve ter passado do estado de potencialidade ao de atualidade, um processo que é meramente possível e que requer um agente para efetivá-lo (Guia, II, 14).

A discussão de Maimônides reside especialmente no fato de que estes métodos utilizados por Aristóteles nada conseguem demonstrar racionalmente ou provar de fato, uma vez que consistem numa inversão lógica insustentável. Esta inversão lógica está apoiada no julgamento da coisa em potência a partir das propriedades que apresenta quando já em ato. Assim, através da crítica lógica, ou seja, utilizando-se dos próprios instrumentos fornecidos por Aristóteles, Maimônides derruba de uma só vez toda e qualquer possibilidade de inferência quanto à origem última do mundo a partir de sua existência atual. Em realidade, para Maimônides, é,

Absolutamente impossível inferir, a partir da natureza que uma coisa possui após passar por todos os estágios de seu desenvolvimento, qual a condição que esta coisa apresentava no momento em que o processo começou. (Guia, II, 17).

O filósofo judeu afirma que, ainda que o surgimento do mundo tivesse ocorrido de modo natural, tal como a produção de qualquer outro ser corpóreo, sujeito à geração e à corrupção, estes métodos utilizados por Aristóteles e seus seguidores nada poderiam provar, uma vez que:

Tudo o que é produzido vem à existência a partir da não-existência. Mesmo quando a substância da coisa já fosse existente e tivesse apenas mudado sua forma, a própria coisa que surgiu pelo processo de gênese e desenvolvimento, e que chegou ao seu estado final, possui agora propriedades diferentes daquelas que possuía no início da transição da potencialidade à realidade, ou mesmo antes. ( Guia, II, 17)

O exemplo que Maimônides apresenta para esclarecer sua objeção é o mais natural possível, ou seja, a questão gira em torno do óvulo e do sêmen e das características que apresentam separadamente, do embrião, e ainda do ser plenamente desenvolvido. É lógico e patente que as características que o óvulo e o sêmen apresentam separadamente são diferentes daquelas que o embrião apresentará e ainda mais distantes daquelas que o ser vivo irá apresentar após o nascimento e crescimento, já plenamente desenvolvido.

E, a partir deste exemplo, apresenta, como análoga à sua discussão com os Aristotélicos sobre a eternidade do mundo, a historieta de um órfão que foi abandonado ainda criança em uma ilha deserta, até que crescesse e adquirisse conhecimento. A este órfão compara, em ingenuidade, a posição defendida pelos aristotélicos radicais. Este indivíduo, ao crescer solitário na ilha, jamais vira um ser humano do sexo feminino. Ao crescer e ter a oportunidade de encontrar outro ser humano, pergunta de que modo um homem nasce e se desenvolve, recebendo então a seguinte resposta:

O homem inicia sua existência no ventre de uma pessoa de nossa espécie, ou seja, de uma mulher, que tem uma determinada forma. Quando está no ventre, ele é muito pequeno, mas tem vida, move-se e alimenta-se e cresce pouco a pouco, até que chega a um certo estágio de desenvolvimento. Ele então deixa o ventre e continua a crescer até que esteja em condições de ser notado por você. (Guia, II, 17)

Uma vez que o órfão jamais teve contato com uma mulher e jamais pôde acompanhar com seus próprios olhos o processo natural do nascimento de uma criança, ficará surpreso e certamente perguntará como pode ser esta situação verdadeira. O órfão indaga: este indivíduo, enquanto estava no ventre da mãe, comia e bebia? Respirava pelo nariz ou pela boca? Excretava? Exercitava seus membros e músculos? Mas, a todas estas perguntas a resposta que ouviria seria negativa.

Como poderia este órfão acreditar que alguém seria capaz de viver durante nove meses nesta situação, uma vez que, considerando um ser humano desenvolvido em seu estado atual, poucos minutos sem respirar bastariam para conduzir qualquer um à morte? Como poderia acreditar que um homem pudesse permanecer ali em um saco, cercado de água, sem comer, sem beber, sem excretar durante meses? E como seus membros estariam intactos ao nascer, uma vez que não se exercitava? Enfim, “Como imaginar que alguém pudesse permanecer durante meses dentro de um saco, e este saco dentro de um corpo, e permanecer vivo e em movimento?” (Guia, II, 17).

Maimônides mostra que este tipo de raciocínio leva alguém a crer que é impossível que o homem tenha se originado deste modo. E conforme sua opinião é este mesmo tipo de raciocínio que conduz os filósofos a pensarem que a teoria da Criação ex-nihilo é impossível, e que, portanto, o universo deve ter existido desde sempre, tal como ele hoje se apresenta, sempre tendo existido o movimento, o tempo e a matéria, a partir dos quais somente as formas iriam se modificando, pelo processo de geração e de corrupção.

Assim, a historieta do órfão é oferecida como analogia ao julgamento por parte dos filósofos da impossibilidade da criação ex-nihilo, tal como descrita no Gênesis e sustentada pelos religiosos em geral: “se os filósofos considerassem este exemplo e refletissem sobre ele, descobririam que representa exatamente a disputa entre Aristóteles e nós” (Guia, II, 17). Mas, seguindo o raciocínio do pensador judeu, verificamos que a crença nesta impossibilidade advém exclusivamente do fato de que os filósofos julgam a existência anterior do mundo a partir de seu desenvolvimento já completamente atualizado:

Os aristotélicos, por sua vez, opõem-se a nós, argumentando com provas baseadas na existência do ser de fato, totalmente desenvolvido. Nós admitimos a existência destas propriedades, mas afirmamos que em nada se parecem com o ser no momento em que foi gerado. Sustentamos ainda que estas propriedades vieram à existência a partir da absoluta inexistência. Portanto, os argumentos deles não constituem objeções à nossa teoria e eles somente possuem força demonstrativa contra aqueles que sustentam que a natureza das coisas, tal como existem no presente, provam a criação[6] . mas essa não é minha opinião (Guia, II, 17).

Sem sombra de dúvida, o golpe desferido por Maimônides é profundo. Sua argumentação é sólida e coerente e, definitivamente, não há como sustentar que ele estivesse logicamente equivocado. O julgamento do ser em potência a partir das propriedades que apresenta em ato é um desvio e não possui base racional no interior da própria lógica proposta por Aristóteles. Mas, desse exemplo utilizado advém um outro problema que se refere à própria posição religiosa de Maimônides: Ao conferir tamanha ênfase à analogia do órfão, podemos dizer que Maimônides está quase afirmando que o Mundo já existia em potência antes de sua criação, ou seja, que o processo de criação do universo segue as mesmas leis aplicáveis a todos os seres criados e, assim, poderia estar assumindo veladamente uma posição derivada do platonismo[7] . Mas ele próprio nos diz que não é assim, e jamais poderia ser, uma vez que a criação é obra de Deus a partir do nada, ação livre, intencional e voluntária e não necessária, e segue um projeto determinado exclusivamente por Sua Vontade.

Maimônides sairá da complicação na qual se enredou através da noção muito utilizada ao longo de seu Guia, a saber, a noção de homonímia. O mundo existia assim, de certo modo, na Sabedoria de Deus, mas não é, em absoluto, possível para nós, criaturas, sabermos de que modo ele existia. Assim, o termo “em potência” é utilizado aqui somente por homonímia, uma vez que a existência prévia na Sabedoria de Deus, ser puramente espiritual, não pode ser comparada a qualquer existência prévia de um ser corpóreo:

Se, entretanto, admitirmos o projeto e determinação de um Criador, segundo Sua incompreensível Sabedoria, todas estas dificuldades desaparecem. Elas surgem quando consideramos todo o Universo não como resultado da Livre Vontade, mas como resultado das leis fixas da Natureza. (Guia, II, 22)

Como a Sabedoria de Deus é imperscrutável pelo ser humano, nada pode ser dito a respeito do modo como o universo foi lá concebido; mas, esta posição poderia ser entendida como um subterfúgio utilizado pelos adeptos da teoria da Criação com o fim de desviar-se da tarefa de explicar o nascimento do Universo. Mas, conforme Maimônides, isso não é necessário, uma vez que a visão aristotélica da Eternidade do Universo é tão frágil quanto qualquer outra teoria, e nada demonstra, uma vez que nada pode ser inferido a partir da existência atual do mundo. Portanto, mostra que, em termos de plausibilidade, a teoria da Criação nada deixa a desejar frente a qualquer outra. Deste modo, Maimônides trata ambas as teorias como opiniões e explica como devemos escolher entre elas. No capítulo 23, ele nos indica que isto deve ser realizado sem preconceitos ou predisposições e racionalmente, e a escolha deve se pautar no grau de improbabilidade das teorias:

Ao comparar as dúvidas levantadas contra uma opinião àquelas contrárias à sua para decidir a favor da menos questionável, não se deve considerar o número de objeções, mas o nível de improbabilidade e de desvio dos fatos reais, pois uma única objeção pode ter mais peso do que mil outras. A comparação somente será proveitosa para quem conceda paridade às duas hipóteses opostas. Se você estiver predisposto a aceitar uma delas, estará cego demais para enxergar a verdade. (Guia, II, 23)

Entretanto, uma vez que ambas estejam em pé de igualdade, ou seja, como no caso aqui tratado, em que tanto a teoria da Criação quanto a teoria da Eternidade do Universo são igualmente plausíveis e igualmente sujeitas a objeções e questionamentos, Maimônides não segue seu próprio critério racional, mas apela para a autoridade da Tradição Profética.

Sempre suspeite da própria razão e aceite a teoria ensinada pelos dois Profetas que são o pilar da ordem existente nas relações sociais e religiosas da Humanidade. Somente uma prova demonstrativa seria capaz de fazê-lo abandonar a teoria da Criação, mas esta prova não existe na natureza. (Guia II, 24)

Ou seja, para rejeitar a teoria de Aristóteles, usa-se o argumento de que ela não foi jamais demonstrada. Mas, uma vez que é considerada impossível a demonstração de qualquer teoria referente ao tema, então Maimônides abandona seus critérios racionais e afirma que devemos escolher pela autoridade da Tradição, ou seja, dos Profetas de Israel. E acrescenta que:

É, de fato, ignorância ou uma espécie de loucura fatigar nossas mentes buscando coisas que estão além de nosso alcance, sem dispor dos meios necessários para nos aproximarmos delas. Devemos nos contentar com aquilo que está ao nosso alcance e, aquilo que não pode ser abordado por inferência lógica, vamos deixar para aquele que foi favorecido por esta grande e divina influência, expressa nas palavras: “Boca a boca falarei com ele” (Números 12:8). (Guia, II, 24)

Mas, há que lembrar que, curiosamente, para afirmar que o próprio Aristóteles estaria ciente de que sua teoria sobre a Eternidade do Universo era uma mera opinião, Maimônides cita que o Estagirita teve que apelar para a autoridade dos filósofos anteriores, ou seja, Aristóteles teria invocado aqui também a Tradição. Considerando a reflexão de Maimônides acima citada de que “a comparação só será proveitosa para aquele que conceda paridade ás duas hipóteses opostas”, ao analisarmos as duas propostas a partir dos critérios racionais utilizados pelo autor, concluir-se-ia o seguinte: uma vez que, após seu criterioso exame, ambas são igualmente plausíveis, igualmente improváveis e igualmente sustentadas somente por argumentos de autoridade da Tradição – ainda que cada uma delas por sua própria Tradição, quer dizer, uma pela tradição profética e a outra pela tradição filosófica – resta-nos apenas uma saída, que seria a de considerar as duas em absoluta igualdade. Nessa situação, a nosso ver a saída não seria optar pela tradição preferida, mais próxima ou considerada superior por qualquer critério, mas, simplesmente afirmar a ignorância.

Mas que tipo de ignorância escolheremos? Ainda faltará saber se a afirmação de nossa ignorância assumirá um caráter cético, lógico ou propriamente filosófico, na mais fundamental acepção da palavra. A nosso ver, o significado desta ignorância pode seguir em três diferentes vias: 1) a primeira delas significaria entendê-la a partir de uma postura radicalmente cética e que, portanto, irá conduzir diretamente a abstermo-nos de opinar, uma vez que não podemos ter certeza. 2) Por outro lado, o significado desta ignorância pode ser puramente lógico, uma vez que, ainda que atinjamos algum tipo de lampejo ou fragmento de conhecimento, este não seria jamais demonstrável a partir de uma linguagem racional. Esta segunda via seria uma saída de estilo Wittgensteiniano, como quando afirma no Tratactus que “Sobre aquilo de que não se pode falar, deve calar-se[8] ”. 3) Ou ainda, esta conclusão também pode assumir, seguindo os passos do Cusano, um caráter de possibilidade infinita, tornando-se uma Docta ignorantia, a qual nos faria caminhar cada vez mais para além:

Com efeito, nenhum outro saber mais perfeito pode advir ao homem, mesmo ao mais estudioso, do que descobrir-se sumamente douto na sua ignorância, que lhe é própria, e será tanto mais douto quanto mais ignorante se souber[9] .





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NOTAS

[1] Almôadas ou Almohades (1147-1232) grupo também berbere que desafiou a autoridade dos Almorávidas, vieram a substituí-los no poder a partir de 1147. Governaram por 122 anos entre os séculos XI e XIII. Tinham uma visão “puritana” da religião e foram os responsáveis por uma verdadeira “cruzada” para purificar o Islam. Tomam a cidade de Sevilha, estabelecendo ali seu governo independente.
[2]As obras de Maimônides não se resumem a estas citadas. Destacam-se também, sobre astronomia, o “Tratado sobre o calendário (judaico)” (1158), “Carta aos Rabinos e Marselha sobre a astrologia” (1194). Entre suas cerca de dez obras de medicina, destacam-se «Aforismo médico de Moshé» (1187-1190), «Tratado sobre a asma» (1190), «Sobre o coito» (1191), «Sobre higiene» (1198) e «Explicação das particularidades» (1200).
[3]Maimônides era um adepto da teologia negativa radical, ou seja, de que não se pode predicar propriamente nada de Deus. Para explorar mais profundamente a questão ver VERZA, Tadeu, a Doutrina dos Atributos divinos em Maimônides.
[4] Kalam - Proveniente de Kalaam Allah (Palavra de Deus) – Por este nome ficou conhecida uma escola de interpretação racional das escrituras; ‘Ilm Ul-Kalaam - teologia especulativa. O termo árabe Kalam foi “exportado” e considera-se, por associação, que exista um Kalam judaico e até mesmo um Kalam cristão que se dedicam à defesa das escrituras, da criação e da necessidade de um princípio e causa do mundo através de argumentos racionais.
[5]Todas as citações do guia para os perplexos serão indicadas por “Guia,” a indicação da parte e a indicação do capítulo. A maioria das citações são traduções livres da autora deste artigo, a partir de MAIMONIDES, Guide for the Perplexed, translated from the original arabic text by M. FRIEDLANDER. 2nd. Edition. New York: Dover Publications, 1956. Algumas são citações retiradas da segunda parte do Guia que foi publicada em português como O Guia dos Perplexos, parte 2, trad. Uri LAM, São Paulo, Landy, 2003.
[6]Maimônides aqui se refere aos pensadores do Kalam que julgam contra-argumentar em defesa da teoria da Criação a partir do mesmo raciocínio adotado pelos peripatéticos.
[7]Alguns comentadores de maimônides assim entendem, como podemos verificar em DAVIDSON, H., Maimonide's Secret Position on Creation, In I. TWERSKY, ed. Studies In Medieval Jewish History and Literature. Harvard University Press, 1979, p. 16-40.
[8]WITTGENSTEIN, L. Tratactus Lógico-philosophicus. Edição bilíngüe, Tradução, apresentação e estudo introdutório de Luiz Henrique Lopes dos Santos. São Paulo, Edusp, 2001, 7, p. 281.
[9]NICOLAU DE CUSA, A Douta Ignorância, Livro I, cap. I. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003, p. 5.