BAUDELAIRE - O olhar verdadeiro sobre o mundo

Thais Padilha(1)


A paixão por Baudelaire começou cedo na minha vida, mas não foi a primeira. Veio acompanhada por filósofos e poetas que fizeram sentimentos como o pessimismo, o tédio e a melancolia bastante familiares a mim. Nietzche, Schopenhauer, Edgar Allan Poe, Cruz e Souza, Florbela Espanca e Emily Bronte foram alguns dos nomes que me acompanharam em uma adolescência solitária e bastante turbulenta. Mas, os outros que me perdoem, foi Baudelaire quem coroou meu coração com o ímpeto de falar sobre o mundo e sobre mim mesma através da poesia.

Era quase inevitável que esse misterioso francês cedo ou tarde surgisse pra mim com seus poemas (im)perfeitos e carregados de signos e personagens. Ler cada linha era enxergar o mundo através do seu olhar e se transportar para Paris desejando aquela vida soturna e boêmia com o dandy mais icônico que já existiu.

A beleza em Baudelaire está em falar do mundo como ele é, sem mentiras, sem floreios. Às vezes belo e simplório, às vezes triste e sombrio, às vezes apenas totalmente indiferente ao sofrimento daqueles que nele vivem. No universo de Baudelaire absolutamente tudo clama por uma poesia, nenhum detalhe escapa aos olhos do poeta. Uma mendiga ruiva merece um poema tanto quanto um imenso céu cheio de nuvens. Baudelaire sabe que somos nós quem colocamos valor nas coisas quando nos debruçamos sobre elas com um olhar que abraça e investiga sem maniqueísmos infantis.

Les fleurs du mal… me lembro bem de quando esse livro chegou até mim. O li e reli por dias e encontrei em cada poema um universo completamente único, como um quebra cabeças das andanças do poeta que foi buscar inspiração nos céus e nas sarjetas de Paris. Como esse homem conseguia trazer flores e vermes aos poemas e, ainda assim, ser tão charmoso, intenso e hipnotizante? Como é que ele nos faz desejar viver a vida mesmo em suas misérias mais profundas dando significado real ao que Nietzsche chamaria de amor fati?

As flores do mal iniciam seu feitiço com uma carta a quem o lê. Nada mais justo do que se endereçar diretamente àquele que se perderá em suas páginas e Baudelaire é brutalmente sincero anunciando ao hipócrita leitor, seu irmão, o que ele encontrará ali. Eu gosto de pensar que muitos largaram esse livro horrorizados com esse primeiro poema. Me orgulho de, aos 13 anos, ter me apaixonado perdidamente por todos esses versos, sentindo que Baudelaire escrevia para que eu pudesse ler. Aliás, talvez quem esperasse algo diferente de um livro chamado “flores do mal” sequer merecesse lê-lo. O francês passa ali um pente fino em seus leitores: nada de meio termos. Nada de gostar mais ou menos de Baudelaire. É preciso entrega e Baudelaire quer um cúmplice, não só um mero expectador.

"Em tudo o que repugna uma jóia encontramos”. Para mim, esse verso poderia perfeitamente resumir do que se trata a obra de Baudelaire. Talvez existam dois tipos de pessoas: as que se desviam do corpo de um pequeno animal em putrefação em meio à rua e as que conseguem enxergar na repugnância, a jóia. Ou melhor, talvez exista um terceiro e raríssimo tipo: aquele que, inspirado por uma carniça em decomposição, escreve um poema de amor para sua amante. Este terceiro é Baudelaire.

"Ardia o sol naquela pútrida torpeza,
Como a cozê-la em rubra pira
E para o cêntuplo volver à Natureza
Tudo o que ali ela reunira.
E o céu olhava do alto a esplêndida carcaça
Como uma flor a se entreabrir.
O fedor era tal que sobre a relva escassa
Chegaste quase a sucumbir.”



Ainda em sua dedicatória ao leitor, Baudelaire acalenta o coração daqueles que, como ele, são os foragidos da normalidade, daqueles que jamais viveram um comercial de margarina. Está tudo bem, ele diz. Uma vida bem vivida contém, inevitavelmente, amores e tragédias. Brindemos à isso!

"Se o veneno, a paixão, o estupro, a punhalada
Não bordaram ainda com desenhos finos
A trama vã de nossos míseros destinos,
É que nossa alma arriscou pouco ou quase nada.”



Já adulta, fui morar em Paris por um ano e a memória que mais guardo de lá era andar pela cidade nas manhãs cinzas e frias e imaginar Baudelaire pelos mesmos caminhos, tentando sentir o que ele sentia. Imaginava o dândi e todos os personagens de seus contos e poemas acontecendo ali, naquelas ruas tão lindas e melancólicas. Não é à toa que Paris guarde em seu coração gênios como Baudelaire.

"Paris mudou! Porém minha melancolia
É sempre igual: torreões, andaimarias, blocos,
Arrabaldes, em tudo eu vejo alegoria,
Minhas lembranças são mais pesadas que socos.”



Também Camus se fascinou com Baudelaire e a ele se refere como um dândi revoltado. Profundamente atraída por tudo o que me aproximasse da visão de mundo do poeta francês, em 2008 iniciei uma pesquisa que nasceu do meu fascínio pela revolta presente na obra desses dois homens. Nesse mergulho percebi que a revolta de Baudelaire, diferentemente da camusiana, é mais romântica e menos existencial, é mais instinto e menos razão. Gosto de fazer um contraponto entre Baudelaire e o principal personagem de Camus, Mersault, pois Mersault não se sente bem no mundo que habita, sente-se um estrangeiro dentro de sua própria vida, enquanto Baudelaire não poderia estar em outro lugar que não fosse ele próprio e tudo o que o cerca.

Baudelaire foi filósofo e antropólogo através de sua poesia. Observou o mundo, mas também foi parte dele, recusando-se à metafísica que ignora a vida real. Fez análises através do ímpeto de suas paixões. Escreveu duras verdades que somente um homem de coração generoso poderia ter enxergado em pessoas e coisas que todos ignoram. Com ele aprendemos sobre o mundo e sobre nós mesmos e conseguimos enxergar sempre além do óbvio.

Levo Baudelaire sempre comigo, seja em livros, seja repetindo meus poemas favoritos mentalmente, seja experienciando o mundo como ele nos ensina. Enquanto escrevo esse texto, penso que gostaria que ele fizesse um sorriso de cumplicidade surgir nos lábios daqueles que amam Baudelaire tanto quanto eu, mas também que ele fizesse nascer novos leitores amantes desse homem singular, daqueles que puxam assunto quando te vêem segurando um livro, que querem compartilhar aquilo que a maioria não entende (ou não quer entender). Espero que assim seja, - Hipócrita leitor, meu igual, meu irmão!

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(1) Thais Padilha é formada em Filosofia pela Universidade Mackenzie.



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