CULINÁRIA DO AMOR

Milena Tarzia(*)


Sentada diante daqueles que não me veem, aceno aos garçons do meu inconsciente para que me tragam minha bebida e pratos prediletos. Eles não me ouvem. Mas ao ensaiar pequenos relatos de belas paisagens, começo a escutar, num ritmo quase ditirâmbico, os apelos dos meus tambores estomacais: tenho fome.

É certo que eu poderia optar por deixar meus amigos invisíveis e, então, saciar não só o meu desejo, mas a minha necessidade vital. Alimentar-se não é justamente esse continuar a ser? Mas optei por continuar a escrever, e eis-me aqui, tamborilando sobre o que nos dá água na boca e nos preenche deliciosamente.

Com efeito, falar de uma alimentação saudável é difícil, visto que muitas das nossas delícias nos fazem mal. Um doce bem açucarado ou uma carne bem sangrenta muitas vezes são preferíveis aos ásperos tecidos de uma folha verde - folha que também se alimenta por esses mesmos tecidos. Entretanto, é por meio da ingestão dos alimentos que nos são mais saborosos que pouco a pouco me atrevo a pensar em outros tipos de alimentos, mais ácidos, mas também vitais, que com seus poderosos nutrientes nos fornecem energia suficiente para o ato de continuar.

A carne que agora mastigo lentamente me mantém em pé. Eu poderia dizer que é dessa mesma forma, lenta e dilacerante, que o amor - esse alimento mal passado, sangrento, suculento - sustenta em mim a minha fome de viver. Ele, que com seus irresistíveis temperos picantes, insiste em perturbar o meu olfato e maltratar meu paladar! Ele, que com seu atrativo aspecto e forma e peso, me estufa em grandes pesadelos noturnos indigestos! Engorda-me quando bem entende, em noites de excesso do cru e do cozido. Afina-me quando vai embora, deixando carência e apatia. Só nutre se eu também o alimento.

Mas eu estaria mentindo. Vejam, leitores que não me enxergam, eu não me oporia aos que dizem que o amor é um alimento, que é o placebo do insaciável, que é o motor vital dos mortais. Não me oporia em compará-lo, também, com a carne, ainda que humana, que desloca grupos inteiros de lobos famintos mundo afora, na ânsia do devorar.

O que eu reluto em aceitar, caro leitor invisível, é o entendimento do amor como mero alimento a ser consumido, e não como energia, como força, potência. Por sentir o estômago roncar tantas vezes é que me atrevo a ver o amor como um Poder. Não como um Deus que nos governa, mas como um Poder invisível que paira sobre alguns olhos cansados. O amor não é cego, nós é que somos – daí a invisibilidade do Poder. Nessa relação de comando, aceito o que me é imposto e sigo com o mínimo de urgência para poder sobreviver, de modo que o Poder, mais dia ou menos dia, acaba por se tornar o narcótico mais alucinógeno, do qual, quase sempre, me torno usuária dependente. Toxicômana do amor? Talvez. Sinto fome! Mas não sejamos relapsos. É a essa dependência de um Poder invisível que devemos nossa maior singularidade; ela é o que nos faz energicamente criadores, poeticamente humanos. Portanto, quando digo que amor é energia e Poder invisível, não há o intuito de tratá-lo como sobre-humano, mas como absolutamente e tão somente humano: tão humano e invisível quanto você, caro leitor: insuperavelmente fictício.

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(*) Milena Tarzia é Coordenadora do Curso de Direito da FASC/OAPEC – Santa Cruz do Rio Pardo – SP, Doutoranda em História antiga pela UNESP/Assis.


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