DOIS QUARTETOS, Dois Tercetos e Quatro Séculos

Lívia Bono(1)


“Me pergunto quem foi o primeiro a descobrir a eficiência da poesia para espantar o amor!”. Esta citação da espirituosa Jane Austen faz uma conexão inusitada entre o amor e as palavras. Teria ela razão? Seriam excludentes, ou talvez um dependente do outro, ou teriam ambos uma ligação positiva? Quando nos referimos a ambos os termos, “amor” e “palavras”, a mente volta-se para aquele que não somente soube manejar estas últimas com maestria, como também tomou o primeiro como seu tema primordial. William Shakespeare produziu incontáveis peças, tratando de variados temas, e também inventou diversas palavras para exprimir sentimentos e referir-se a situações para os quais ainda não havia termos, mas foi em seus “Sonetos” que tratou da questão do “amor” de forma mais bela, talvez por serem (presumivelmente) de cunho autobiográfico. Dentre seus 154 sonetos, o Soneto XVIII é o mais famoso. É o mais direto em suas declarações para quem se supõe ser Henry Wriothesley, 3º Conde de Southampton, sendo que os outros contêm conselhos do escritor para o recipiente. Segue abaixo, em sua íntegra, ao lado da tradução de Ivo Barroso (in “42 Sonetos”, da Editora Nova Fronteira):

Shall I compare thee to a summer's day?
Thou art more lovely and more temperate:
Rough winds do shake the darling buds of May,
And summer's lease hath all too short a date:
Sometime too hot the eye of heaven shines,
And often is his gold complexion dimm'd;
And every fair from fair sometime declines,
By chance or nature's changing course untrimm'd;
But thy eternal summer shall not fade
Nor lose possession of that fair thou owest;
Nor shall Death brag thou wander'st in his shade,
When in eternal lines to time thou growest:
So long as men can breathe or eyes can see,
So long lives this, and this gives life to thee.

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Devo igualar-te a um dia de verão?
Mais afável e belo é o teu semblante.
O vento esfolha Maio inda em botão,
Dura o termo estival um breve instante.
Muitas vezes a luz do céu calcina,
Mas o áureo tom também perde a clareza,
De seu belo a beleza enfim declina,
Ao léu ou pelas leis da Natureza.
Só teu verão eterno não se acaba
Nem a posse de tua formosura;
De impor-te a sombra a Morte não se gaba
Pois que esta estrofe eterna ao Tempo dura.
Enquanto houver viventes nesta lida,
Há de viver meu verso e te dar vida


A primeira estrofe coloca uma pergunta, que o resto do soneto é dedicado a responder. Ao comparar seu amado a um dia de verão, o poeta constata que o primeiro é “mais afável e belo”. Declara que sua beleza é mais permanente do que um mero dia de verão, que é, por vezes, quente demais, e sempre inconstante. Enquanto a estação sempre tem um fim, o amor do poeta pelo sujeito de seus versos é eterno, e mais, eternizado através destas próprias palavras; “[...] enquanto nesta terra houver um ser, meus versos vivos te farão viver”, na tradução de Barbara Heliodora. Podemos constatar que o escritor postula que o amor transcende a natureza, transformando o destinatário do soneto em uma força da natureza por si próprio, como se ele mesmo fosse uma encarnação do verão. Se torna mais poderoso até mesmo do que o fenômeno natural ao qual estava sendo comparado; o amor do poeta por ele é tamanho, que nem mesmo a morte conseguirá por fim nele. Sobreviverá ao longo dos séculos através do próprio soneto, do poder da palavra escrita, enquanto houver olhos que leiam suas estrofes.

Pois o que poderia ser mais poderoso do que as palavras? Filósofos e escritores debruçaram-se sobre o tema ao longo dos séculos. Wittgenstein propunha que os significados das palavras não são determinados por uma conexão abstrata entre a linguagem e a realidade, e sim por como as palavras são usadas (ou, nas palavras d’O Bardo, “o que há em um nome? Aquilo que chamamos de rosa, sob uma outra designação, teria igual perfume” (Romeu e Julieta)). Em seu “Elogio de Helena”, Górgias se refere à palavra como “aquela poderosa soberana, que, [...] perfeitamente invisível, atinge os resultados mais fantásticos”. Como colocado também por Iris Murdoch, “as palavras são os símbolos mais sutis que possuímos, e nosso tecido humano depende das mesmas”.

O sociólogo e filósofo Fernand Dumont defendeu que “os seres humanos têm a faculdade de criar um universo além do da necessidade. A linguagem é sua mais elevada encarnação”. Shakespeare, ao moldar magistralmente os vocábulos em seu soneto, fez exatamente isso. Através da arte da palavra escrita, perpetuou a memória de seu amor através de gerações. Em sua língua materna, há um termo para “escritor”, que não tem tradução direta para o português: “wordsmith”M, o “artífice das palavras”, aquele que as combina e move de modo a expressar o que pretende que preencha as mentes daqueles que as lerão. Ele, assim como outros escritores, filósofos e todos os outros que se utilizam da linguagem como ferramenta, tinha uma grande confiança em seu poder não só de transformação, como também de preservação. Umberto Eco afirma, em sua “História da Beleza”, que o homem ama aquilo que é belo, e que um dos desígnios da arte é preservar o objeto de sua admiração para a posteridade.

Os antigos egípcios acreditavam que se morre duas vezes: uma quando o corpo fenece, e outra quando perece a memória de nós. A “segunda morte” era a mais temida, por ser o esquecimento absoluto; por isso, tinham uma rica tradição de literatura funerária, registrando por escrito as histórias dos mortos, para impedir que o temível olvido acontecesse. Então, o que O Bardo pretendia com seu Soneto XVIII foi exitoso, pois, apesar de anônimo, o destinatário de suas palavras continua vivo nas mentes das pessoas, dois quartetos, dois tercetos e quatro séculos mais tarde.

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(1) Lívia Bono é graduada em Filosofia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, pós-graduada em História da Arte pela FAAP e tradutora.



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