ENTRE EROS E PHILIA: COMO AMAVAM OS FILÓSOFOS NA GRÉCIA CLÁSSICA?

Jussara Alonso(*)


O mundo contemporâneo parece dominado por uma verdadeira obsessão pelo amor, inquietando-se com a solidão do ser humano como um mal derivado de sua ausência, ou com a legitimidade das formas de sua busca, por exemplo, na prostituição ou em uniões homoafetivas. Entretanto, não somos os únicos a nos preocuparmos com o amor, um tema presente no mundo em todas as épocas e culturas, na religião, na arte, na literatura e, por certo, na filosofia.

A História relata que, por amor, os homens construíram reinos e os destruíram, travaram guerras infindáveis e fizeram acordos de paz, e pensaram até poder escapar de sua condição mortal e alcançar a eternidade. Dizem que amor é fonte de todo bem e toda virtude e alguns chegam a creditar-lhe a condição de origem do saber. É que esse tema vastíssimo nos faz pensar em todas as formas de interação humana, com a natureza, com o divino, entre os seres humanos e também com suas formas de conhecimento do mundo. Não por acaso, a própria palavra Filosofia traz em si a marca do amor sob a forma da amizade (philia) característica do sábio (sophos) , assim chamado por seu amor à sabedoria (sophia) , que o leva a cultivar a filo-sofia.

Entretanto, no mundo grego, berço da Filosofia Ocidental, encontramos também outra palavra que designa o amor sob outro aspecto, como eros, aquele que opera no plano da atração física dos corpos. Alguns mitos o definem pela explicação de sua origem, como Platão no Banquete, em que retoma o mito dos andróginos. Estes seriam criaturas poderosas que teriam existido no início da humanidade, seres duplos dotados de quatro pares de membros e duas cabeças voltadas em direção oposta, sendo completos em si mesmos como hermafroditas, portadores de ambos os sexos, com características simultaneamente masculinas e femininas.

Por seu excessivo poder, os deuses temeram que eles pudessem atacá-los e assim, em resposta a uma queixa de Apolo, Zeus ordenou aos titãs que os separassem em duas metades, como os seres humanos que desde então passaram a existir. Entretanto, desesperados com a separação, os andróginos buscavam incessantemente sua outra metade, deixando-se morrer abraçados quando a encontrassem. Então, por piedade, Zeus pôs neles o sexo na parte dianteira de seu corpo, que modo a que pudessem novamente reencontrar seu primitivo sentido de completude ao unirem-se no ato sexual.

Esta seria a origem da atração física dos corpos, como nostalgia da alma e anseio indefinido por uma plenitude que nem o momento efêmero do prazer no sexo pode lhe assegurar. Assim, ainda no Banquete, Platão irá caracterizar um outro aspecto do amor como busca, num vai e vem incessante, dada sua dupla natureza, enquanto filho de Poros, a abundância, e Penia, a escassez. É a falta e a carência que levam Amor a buscar saciar sua fome de plenitude, mas, sempre desencantado por nunca poder satisfazer-se com a abundância momentânea encontrada, reinicia sua busca.

O tempo parece ter aqui um lugar significativo, e o amor, neste caso, mantém uma relação intrínseca com o mundo natural da physis. De Hesíodo e os pré-socráticos até Aristóteles, a questão da geração e corrupção na natureza, à medida que passa o tempo, esteve no centro da reflexão filosófica. Hesíodo faz o inventário de Os trabalhos e os dias conforme as estações e Empédocles explica o ciclo do cosmos como resultado da ação do Amor (philia), como princípio de unidade e concórdia dos quatro elementos que o constituem – Terra, Água, Fogo e Ar – e de criação dos seres numa proporção harmônica de sua união. Entretanto, continuando sua ação, o Amor chega ao excesso de fundir de modo aberrante esses elementos, criando homens de duas cabeças ou múltiplos membros, por exemplo. Então, entra em ação o Ódio (neikos), que desagrega essas formas e restaura sua normalidade, até que, por excesso, essa ação de discórdia novamente crie aberrações, como membros separados do corpo ou “olhos que vagam sem nenhum rosto a abriga-los”. É então que retorna o Amor, recomeçando esse movimento eternamente. Mesmo em Aristóteles, o céu das estrelas fixas se move em círculos regulares porque é atraído por um Primeiro Motor imóvel “como o ser amado atrai o amante”.

Assim, o que a relação entre amado e amante nos ensina sobre o amor é que aquilo a que aspira e lhe cabe criar, a concórdia e a harmonia, é um bem que deve escapar à obra do tempo, situando-se no plano da eternidade, ou então algo que se alia ao próprio tempo, para criar uma ordem que, ao repetir-se, imutável, paradoxalmente dele escapa, porque “o tempo é a imagem móvel da eternidade”, como diz Platão no Timeu. Mas a eternidade é o tempo em que habitam os deuses imortais e não os homens, sujeitos ao nascimento e à morte. Assim, aliando-se ao tempo, os homens encontram no seu desejo de procriar - que partilham com os animais, mas que os diferencia dos seres divinos – um modo de escapar aos limites que lhes impõem a geração e a corrupção. Pois nascemos, crescemos, envelhecemos e, ao aproximar-se da morte, podemos deixar no tempo algo que se assemelha a nós, na figura de um novo ser, conquistando assim uma espécie de imortalidade através das gerações. Esta é a função de Eros no mundo dos sentidos, responsável pela atração física dos corpos e a procriação.

Mas já aí o amor encontra aquilo que o impulsiona a ir além desse mundo sensível, em busca de um bem maior a que aspira, e é nisso que consiste o processo do conhecimento. É através da beleza que os homens conseguem identificá-lo, pois esse é o modo mais imediato de se perceber o bem. Da beleza sensível à sabedoria são inúmeras as formas do amor, que Platão enumera e escalona, não só no Banquete como também em outro de seus diálogos, Fedro, que nos mostra o caminho que percorremos da experiência sensível até o amor pela sabedoria, isto é, a Filosofia.

É por um processo pedagógico que os homens aprendem, através do reconhecimento do que é belo, a escalonar diferentes formas de amor. Lembremos, como nos ensina Jaeger, que a cultura grega preza acima de tudo a harmonia das belas formas, do equilíbrio da arquitetura dos templos à excelência da performance dos atletas num estádio, da perfeição das esculturas de Fídias à grandiosidade solene dos festejos no templo de Zeus por ocasião dos jogos em Olímpia. A educação básica consistia no ensino da ginástica, da música e da dança, além de escrever e contar, embora a verdadeira paideia fosse o aprendizado do que é ser grego como expressão da areté, a virtude do que é “belo e bom” (kalosk´agathos). Isso era o que o indivíduo aprendia na experiência cotidiana das atividades públicas da vida da polis, fosse a assembleia na ágora ou um festival de teatro ou ainda uma guerra onde aprender a coragem e a magnanimidade. Era às portas das academias de ginásticas que os homens mais velhos e respeitados iam cortejar os jovens para se tornar seus preceptores e conduzi-los à vida virtuosa de um adulto na polis.

Este é o cenário em que Platão fala dos passos do amor em busca da beleza. De início, contemplamos os belos corpos desses jovens, depois, a beleza de muitos outros corpos reunidos em competições atléticas, até alargarmos essa percepção da beleza em toda parte e chegarmos à compreensão de que existe uma beleza interior da alma, que faz ver como belo um homem de traços grosseiros como Sócrates. Eis o que nos leva ao desejo de compreender o que é a essência da beleza, até que, deixando o reino da palavra, no diálogo, chegamos à contemplação do Belo em si, sua Forma ou Ideia (eidos), seu Conceito, que engloba todas as suas variações no mundo sensível, imutável como essência pura e imortal, como no mundo dos deuses.

O amor e o saber, na visão de Platão, buscam a contemplação de algo preexistente, como uma recordação daquilo que seria o nosso sentido primitivo de totalidade e completude, dado pelos deuses antes da criação do mundo, sendo, portanto, um desejo daquilo que é eterno e imutável, a verdadeira essência do amor, expressa na ideia do Bem que nos leva ao conhecimento. O amor parte da carência, mas busca no desejo das coisas do mundo sensível a união com a totalidade essencial que lhe falta, gerando assim, na tensão entre o que lhe falta e a abundância a que aspira, o verdadeiro caminho para o Bem. O filósofo, tal como o amor, também se encontra numa posição intermediária, pois tem clareza da sua ignorância, mas almeja o saber que é o Bem em si. Para Platão, os deuses não necessitam filosofar, pois a eles pertence toda a sabedoria. Os homens comuns também não filosofam, pois, sem saber da sua ignorância, acreditam tudo saber, pensam viver harmoniosamente com suas tensões eróticas e seus saberes, quando de fato não estão a cultivar o verdadeiro amor, aquele que seria o único a propiciar a concordância e a harmonia desejadas e nos levar à verdade essencial do saber.

O amor, portanto, na visão de Platão seria o elo entre a experiência terrena do homem e a busca de algo essencial para além dela. Estranhamos que, em todo o Banquete, Platão trate exclusivamente de Eros, quando esperaríamos encontrar a Philia como parte de um ensinamento filosófico. O amor age como um intérprete dos desejos do homem em relação aos deuses, sendo assim capaz de unir em harmonia todo o universo. Mas quando um interlocutor tenta distanciá-lo do mundo, concebendo-o como um deus, é a palavra de uma mulher, Diotima de Mantineia, que o traz de volta à realidade sensível. Assim como o homem busca através do amor satisfazer seu desejo erótico no plano físico, como ato instintivo e desejo de imortalidade, também o amor busca procriar no plano espiritual com sua marca própria, nas ideias e criações deixadas como recordação para toda a humanidade. Se aos homens não foi dado o direito de eternidade, eles têm, no entanto, a possibilidade de se fazerem lembrar por seus feitos heróicos e sua criação artística. Assim, não é só na procriação dos seres humanos que age o amor, mas em toda forma de sua expressão criativa no plano da cultura, inclusive no âmbito ético e pedagógico, em que nos educamos coletivamente para aprender o que é justo, belo e bom, kalosk´agathos.

O amor que busca a verdadeira essência das coisas, aquilo que transcende o mundo da experiência imediata, tem uma força educativa, pois afasta os amantes daquilo que é considerado vil e cria uma unidade de amizade e cooperação entre amante e amado. Não se trata, nesse sentido, somente de satisfazer apetites eróticos, mas de buscar um ideal na forma de um amor nobre que, através de uma relação de concordância e reciprocidade, alcançaria o conhecimento e o saber. Isto é o que críticos como Jaeger consideram como a justificativa moral e educacional do amor no Banquete, pois tem em vista não só a fruição erótica ou intelectual dos homens, mas uma proposta educacional e ética própria ao modo de vida da polis ateniense.

É a apropriação posterior de Platão pelo cristianismo e a filosofia medieval que cria uma verdadeira metafísica do amor, apartado da vida terrena e a ela oposto, exercício de ascese espiritual em busca de um Deus fora do mundo. Para o pensamento grego, fundamentalmente enraizado na vida virtuosa do indivíduo e da polis, é o mesmo amor terreno e carnal, Eros, que leva à busca do conhecimento como objeto do verdadeiro amor que, inalcançável, resulta, no entanto, na Philia, este amor que é desejo e busca do saber próprio da Filosofia.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Ed. Martins Fontes, São Paulo, 1998.
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. Leonel Vallandro & Gerd Bornheim da versão inglesa de W.D. Ross. São Paulo: Abril Cultural, 1979. (Os Pensadores).
JAEGER, Werner Wilhelm. Paidéia: a Formação do Homem Grego. São Paulo: Martins Fontes, 1979.
PLATÃO. A República. 7. ed. Trad. Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993.
____. Banquete; Fédon . 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Os Pensadores).
____. Fedro. 19ª ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996. (Diálogos)
____. Mênon. Rio de Janeiro: Ed. PUC Rio; Loyola, 2001.
____. O Banquete. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Os Pensadores).
____. Timeu. Trad. Carlos Alberto Nunes. Pará: Universidade Federal do Pará, 1977.


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(*) Jussara Alonso é formada em Filosofia pela Universidade Mackenzie.


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