O AMOR NUM DIÁLOGO DE PLATÃO E ALGUNS COMENTÁRIOS

Jorge Luis Gutiérrez(*)


Fragmento do livro "Amor e filosofia - Um Romance da época dos papiros" de Jorge Luis Gutiérrez. São Paulo, Editora Giostri, 2016.


O AMOR NUM DIÁLOGO DE PLATÃO E ALGUNS COMENTÁRIOS

Um dia eu estava com Andrônico caminhando pela beira do mar. Olhando para mim ele me disse:
— Mariam, nestes últimos dias tenho tentado lembrar o que eu aprendi sobre o amor nos meus estudos de filosofia em Atenas. Para relaciona-los com o que eu sinto por você, Mariam.
— E conseguiu lembrar algo?
— Sim. O primeiro que veio a minha mente e um diálogo que escreveu Platão.
— Lembro de Platão. Você falou dele quando me contou sobre os filósofos Cínicos.
— E verdade, e o mesmo. Platão era o diretor da Academia onde estudou o mestre Aristóteles.
— Que dialogo e esse que você lembrou?
— É o “Simpósio”, isto é o Banquete. Nele Sócrates e seus amigos falam e cada um faz um elogio do amor. Estão num banquete na casa de Calias. Fedro e o primeiro a falar. Ele faz um elogio do amor que educa, que nos faz ter desejos de nos superar. Logo Pausanias distingue o que é o amor inspirado por Afrodite Celeste, que é nobre e espiritual, e o que dá Afrodite Terrestre, malvado e preocupado unicamente com a carne. Em seguida fala o médico Eriximaco. Para ele o amor tem a ver com a saúde do corpo. Então é a vez de Aristófanes, que é o maior escritor de comedias da Grécia...
— Me conta Andrônico!
— Aristófanes fala que o Amor e a procura constante e incansável por nossa outra metade para que estejamos novamente completos e para restabelecer o que éramos originalmente, pois assim nossa alma só descansa quando encontra outra alma que a completa.
— Por que “restabelecer”?
— Porque em algum momento do passado remoto essas duas almas eram uma, formavam uma unidade e essa unidade foi perdida.
— Andrônico me conta a história toda, porque não estou entendendo.
— Aristófanes conta um mito. Ele disse que antigamente a natureza humana era muito diferente do que e hoje. Nessa época primitiva havia três classes de homens: os dois sexos que hoje existem, e um terceiro composto destes dois, o qual desapareceu conservando-se só o nome, andrógino, porque tinha o sexo masculino e o feminino. Aristófanes afirma que os andróginos hoje não existem mais e seu nome está em descredito. Naquela época todos os homens tinham formas redondas, as costas e os lados colocados em círculo. Tinham quatro braços, quatro pernas, duas fisionomias, unidas a um pescoço circular e perfeitamente semelhante, uma só cabeça, que reunia estes dois semblantes opostos entre si, duas orelhas, dois órgãos da geração, e tudo mais nessa mesma proporção. Marchavam retos como nos, e sem ter necessidade de voltar-se para tomar o caminho que queriam. Quando desejavam caminhar ligeiros, apoiavam-se sucessivamente sobre seus oito membros, e avançavam com rapidez mediante um movimento circular, como aquele que fazem alguns acrobatas que rodam fazendo círculos com as mãos e os pês.
— E difícil imaginar como eram esses seres. Mas me conta mais...
— No diálogo de Platão, Aristófanes disse que a diferença, que se encontra entre estas três espécies de homens, nasce da diferença que há entre seus princípios. O sol produz o sexo masculino, a terra o feminino, e a lua o composto de ambos, que participa da terra e do sol. Destes princípios receberam sua forma e sua maneira de mover-se, que é esférica. Os corpos eram robustos e vigorosos e de coração animoso, e por isto conceberam a atrevida ideia de escalar o céu, e combater os Deuses — disse Andrônico.
— Eles decidiram enfrentar os Deuses! E que fizeram os Deuses?
— Zeus deliberou com os outros Deuses sobre o que devia ser feito. E decidiu que dividiria em dois seus corpos, “assim se farão débeis e teremos outra vantagem, que será a de aumentar o número dos que nos sirvam; marcharão retos sustentando-se em apenas duas pernas, e se depois deste castigo conservarem sua ímpia audácia e não quiserem permanecer em paz, os dividirei de novo, e terão que caminhar sobre um só pé, como os que dançam sobre odres na festa de Caco.
— E que aconteceu logo que foram separados?
— Cada uma das partes passa a vida a procura de sua outra metade original, que pode ser um homem, se ele estava unido a um homem; ou uma mulher se estava unido a uma Mulher. Assim a felicidade só acontece quando encontram sua outra metade — disse Andrônico — Eu encontrei a minha outra metade em você. — Sim Mariam, nós nos encontramos. Mas no fundo o mito tem algo de verdade... E este mito dos andrógenos, no fundo fala do problema da solidão humana. Porque só sabem que estão sozinhos os que amam e só os seres apaixonados se sentem só... porem se o amor fosse a terapia para a solidão e nele pudéssemos encontrar nossa outra metade que nos complementasse e completasse para sempre, e encontrar a plenitude antiga, como éramos antes, num tempo perdido, a solidão seria passageira e existiria uma esperança de um dia encontrar aquele ser que nos curara da solidão... E que todos precisam de alguma esperança, especialmente os apaixonados... De algum modo todos somos espectadores e atores simultaneamente no dia a dia do amor.
— E fico feliz por isso. Quando estou com você parece que nada me falta. Que estou completa... E o Simpósio termina assim?
— Não, após Aristófanes fala Agaton. Ele acabava de ganhar um importante concurso literário que era o motivo para a reunião. E finalmente fala Sócrates. Ele afirma no diálogo que só podemos amar o que desejamos, mas só podemos desejar o que não temos. Assim amar e desejar aquilo que não se possui, aquilo de que somos carentes.
— Não quero escutar sobre esse tipo de amor. Vou ficar com Aristófanes. Outro dia podemos falar de Agaton e Sócrates — eu disse.


ANDRÓNICO, EU E O AMOR

Andrônico ficou me olhando por algum tempo e logo acrescentou:
— Eu penso que amamos aquilo sem o qual seria impossível viver, amamos não o que nos falta, mas aquilo sem o qual não poderíamos viver se nos falta. E o que amamos por si mesmo, sem nos perguntarmos que utilidade tem ou o que lucramos com isso. E o que amamos por ser belo e bom, não por outra coisa. E porque nos faz querer ser belos e bons.
— E você, que ama Andrônico? — eu pergunte.
— Amo a beleza, amo as formas... amo você, amo seu encanto... amo seu corpo formoso... amo o sublime... amo a filosofia... amo Atenas, amo minha pequena ilha de Samotrácia, amo minha família... E as vezes amo os sonhos, os desejos e esperanças... E amo você nua... amo você toda... E amo a vida que temos juntos. Eu amo você...
— O amor e belo quando se pode ter a pessoa amada... E você me tem, sou toda sua... E eu amo e tenho você. E eu me sinto muito feliz estando a seu lado e dormindo abraçada a você.
— Sim Mariam, devemos nos sentir felizes porque nos amamos e podemos estar juntos. Porque o amor e amargo quando não se tem o que se ama. No Liceu de Atenas eu tinha um amigo, que após ser rejeitado muitas vezes por uma bela garota que morava perto do Liceu, foi até a casa onde ela morava e escreveu na parede da frente: “Passarei por este mundo sem nunca ter tocado em você. Você não estará na lista das minhas lembranças e você não estará na lista de meus pecados..., mas você estará sempre na lista de meus desejos tristes...
— Sim, Andrônico, seu amigo tinha razão... O amor não correspondido sempre e um desejo triste. Por isso agradeço a Zeus que você correspondeu meu amor... E eu correspondo o seu.
— Por sempre e para sempre, Mariam. Sempre vou amar você. E nós nunca seremos um desejo triste... Sempre seremos desejo alegre, realizado, satisfeito... nós sempre seremos amor em ato.


O MÚSICO E A DANÇARINA: CEBES E NYCHTA

— Gosto das histórias de amor onde os amantes são felizes — eu disse para Andrônico
— Mariam, então você vai gostar da história de Cebes e Nychta. Cebes era um garoto que eu conheci. Ele morava perto da casa da minha família em Samotrácia. Ele queria ser musico, porem nunca consegui progredir. Não tinha nenhum talento para a música, e por mais que se esforçasse os resultados eram quase nada. Ele ensaiava e ensaiava com sua flauta, porém não conseguiu nenhum som harmônico ou agradável. E estava apaixonado de uma bela jovem que dançava muito bem, chamada Nychta, mas com a qual ele nunca tinha falado nem sequer ficado perto. Porque ela morava na cidade vizinha e ele só a tinha visto dançar quando havia visitado essa cidade. Um dia estava tentando tocar a flauta perto dum jardim, e o cansaço o venceu e ficou dormido. E sonhou que ele tomava sua flauta e tocava uma bela música. E a Nychta no sonho dançava ao ritmo da música de sua flauta.
— E que aconteceu quando ele acordou...
— Quando acordou foi contar o sonho para seus amigos que estavam na Agora da cidade, com outros rapazes que ele não conhecia. Eu estava lá e escutei o que ele falou quando contou o sonho e quando acrescentou “não sei qual parte do sonho e impossível, eu tocar uma bela música com a flauta ou a mulher que eu amo dançar diante dos meus olhos aos sons da minha música”. Então um de seus amigos lhe perguntou qual era a moça que ele amava. E ele após alguma hesitação acabou falando que o nome dela era Nychta. Então um dos rapazes que estava com seu amigo que era da mesma cidade que Nychta, lhe dize “Mas como ela vai escutar sua música se ela e surda. Ela dança a música que imagina, a música que nunca ouviu, a música que ela tem na alma. Ela nasceu surda e nunca escutou um instrumento musical. Ninguém sabe explicar como ela dança com tanta graça e beleza”.
— E Cebes foi falar com ela?
— Calma Mariam, me deixa continuar... Então Cebes pensou ”Se ela e surda, ela não saberá que eu toco muito mal a flauta, no coração dela eu posso ser um grande musico”. Foi e falou para a moca de seu amor, mas como ela era surda não pode compreender suas palavras, mas viu nos olhos dele a chama do amor e da sinceridade. Ela se aproximou dele e beijou seus lábios e Cebes a abraçou e a beijou muitas vezes. Quando Nychta viu que Cebes tinha uma flauta na mão pediu para ele tocar. Ele tocou e ela dançou como se fosse uma deusa. E ficou imensamente feliz porque gostava de pensar que a música que ela dançava era a música que saia da sua flauta. Ela sorria enquanto dançava porque pensava que estava dançando a música que ele tocava. Porem ela dançava uma música que não podia ouvir e ele tocava uma música que seria impossível de dançar. Era o milagre do amor acontecendo. E ambos foram felizes e ainda estão juntos e se amam.
— Desta história eu gostei — Eu disse.


TEATRO GREGO: TRAGÉDIAS E COMÉDIAS

Um dia Andrônico me contou que quando morava em Atenas assistiu à peça “As Nuvens” de Aristófanes.
— Nela era tratada com humor a figura de Sócrates. E se comenta que o próprio Sócrates assistiu à peça e deu grandes gargalhadas — comentou Andrônico. Eu disse para Andrônico que gostaria de algum dia assistir uma peça do teatro.
— Será uma das grandes experiências da sua vida. Porem, terá que ser uma tragédia e não uma comedia. Pois, o mestre Aristóteles ensina que a comedia e a tragédia são imitações, mas a comedia e imitação de homens inferiores; imita o torpe e o ridículo, os defeitos e torpezas; a máscara cômica e feia, disforme e não tem expressão de dor. A tragédia imita ações de caráter superior. Por isso produz o terror e a piedade nos espectadores, tem por efeito a purificação dessas emoções. Foi isto que escreveu Aristóteles na Poética — ele respondeu.
Pouco tempo depois se apresentou em Biblos a tragédia “Antígona”, de Sófocles. E assistimos com Andrônico. Contava a história de Antígona, que foi colocada num tumulo ainda viva. Condenada por ter tentado dar sepultura a seu irmão Polinice. E de como Hemos, seu noivo, quando a encontra morta se suicida, e Euridice, a mãe de Hemos, também se suicida. Andrônico me disse que Antígona tinha que sepultar seu irmão Polinice pois a alma do morto não faria a transição adequada ao mundo dos mortos se seu corpo fosse deixado insepulto para alimento das aves e animais.
— Eu gosto da parte em que o coral canta o hino ao amor. Eu decorei essa parte... — disse Andrônico alguns dias depois, num momento em que estávamos lembrando a peça.
— Repete para mim, também gostei dessa parte. Andrônico, então recitou essa parte do mesmo modo como tinha sido feito no teatro:

“Amor, invencível Amor,
tu que destróis as riquezas;
tu que repousas nas
faces tenras das donzelas;
tu que vagueias na vastidão
dos mares e nos campos;
nem os Deuses imortais,
nem os homens de vida curta
podem fugir a teus golpes;
quem te possui enlouquece!”



— Gosto quando os gregos falam do amor. Além desse texto que você falou eu também gostei do final. Da última fala do Coro: “Mais que tudo, a prudência e a base da felicidade. E, no devido aos deuses, não ha que cometer nem um escorregamento. Não. As palavras inchadas pelo orgulho comportam, para os orgulhosos, os maiores golpes; elas, com a velhice, ensinam a ter prudência” — eu disse para Andrônico.
— Antígona acompanhou seu pai, Édipo, quando ele foi expulso de Tebas. Édipo estava cego e Antígona o guiava. Somente voltou para Tebas quando seu pai morreu.
— Quem foi Édipo? — eu perguntei.
— E outra tragédia de Sófocles titulada “Édipo Rei”. Narra a historia do pai de Antígona — disse Andrônico.
— Que aconteceu com ele, me conta.
— A história de Édipo começa quando um oraculo profetiza que ele matara o pai e se casara com a mãe. Para evitar que isto aconteça, o pai manda um pastor o levar até uma montanha e o abandonar para que morresse. Porem, o pastor fica comovido e decide salvar a vida do menino e o entrega a outro pastor. Finalmente a criança e entregue ao Rei de Corinto, que o cria como filho. Édipo um dia fica sabendo da profecia, e como já era um homem, e pensando que o rei de Corinto era seu pai, abandona Corinto para não dar a profecia do oraculo oportunidade de realizar-se. Estando no caminho, perto de uma encruzilhada nas proximidades de Tebas, encontra um desconhecido com o qual tem uma briga e o mata. Quando chega a Tebas consegue decifrar o enigma da esfinge. O prêmio para quem fizesse isto era casar com a rainha e virar rei de Tebas. Muito tempo depois Édipo descobre que a pessoa que tinha matado na encruzilhada era seu pai e a rainha Jocasta, com a qual tinha casado e tido filhos, era a mãe. Frente a estes fatos terríveis, Édipo arranca seus olhos e caminha para um longo exilio. Antígona foi com Édipo, seu pai, e o acompanhou no exilio até sua morte em Atenas. Sófocles escreveu sobre esta parte da vida de Édipo em outra tragédia chamada “Édipo em Colono”, que foi publicada após a morte de Sófocles — disse Andrônico. — E que aconteceu com Jocasta?
— Suicidou-se quando soube que seu último marido era seu filho que tinham mandado abandonar na montanha.
— As tragédias são histórias tristes. Por que os gregos gostam de tragédias?
— Porque elas servem como catarse. Elas provocam nos espectadores piedade e medo. As tragédias servem para purificar as emoções. Isto e o que ensina o mestre Aristóteles, na Poética.
— Andrônico, me fala de outra tragédia.
— Para mim a mais trágica de todas e “Medeia” de Eurípides. Nela Medeia e abandonada por Jasão, seu marido, para ele poder casar com a princesa Glauce. Medeia mata a princesa enviando-lhe um vestido envenenado. O pai dela, Creonte rei de Corinto, quando a vê agonizando lhe abraça, e também morre envenenado. Logo Medeia mata os dois filhos que teve com Jasão, para vingar-se dele por ter traído seu casamento. “Medeia” e uma das grandes tragédias da literatura grega – disse Andrônico. Comentei com Andrônico que isso era muito triste, que gostaria de assistir uma comedia, pois não gostava de chorar. Ele um dia chegou em casa com os papiros da peça “Lisistrata” de Aristófanes. Demos muitas risadas enquanto liamos. A peça contava a história de como Lisistrata organizou as mulheres de diversas regiões da Grécia, na guerra do Peloponeso, entre Atenas e Esparta, para que não tivessem sexo com os homens até que a luta acabasse. Queriam forçar os homens a finalizar uma guerra que estava destruindo a Grécia. Frente a ausência de sexo, os homens acabarem com as batalhas rapidamente e a paz voltou.
— Prefiro as comedias as tragédias...
— Devemos procurar o meio termo entre a tragédia e a comedia, o mestre Aristóteles ensinava que sempre devemos procurar a justa medida das coisas — disse Andrônico.
— Continuo gostando mais das comedias — eu respondi.


(Fragmento do livro "Amor e filosofia - Um Romance da época dos papiros" de Jorge Luis Gutiérrez (São Paulo, Editora Giostri, 2016).

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(*) Jorge Luis Gutiérrez Jorge Luis Gutiérrez é professor de filosofia na Universidade Mackenzie e na Faculdade de Filosofia São Bento (FSB) em São Paulo. Ministrando principalmente aulas de filosofia grega antiga. É doutor e mestre em Lógica e Filosofia da Ciência pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). É membro da Sociedade Ibérica de Filosofia Grega. É autor dos livros: “Fragmentos de Ternura, Filosofia e Desterro” (poemas e contos), “Aristóteles em Valladolid” (filosofia), “Inundada de Luz, poemas de amor e filosofia episódica” (poesia), “Memorabilia Poetica - Oblitus Carmina, Amore Et Desiderio” (poesia), “Fragores e Sussurros” (poesia). E é organizador dos livros: “Filosofia e Literatura” (filosofia), “Educar para Vida Inteira: lanternas filosóficas e pedagógicas” (Filosofia), “Unamuno e o existencialismo” (Filosofia). No ano 216 publicou o livro de poemas "Imagens Espelhadas / Imagens Reflejadas (São Paulo, Editora Gisostri) e o romance "Fragmento do "Amor e filosofia - Um Romance da época dos papiros" (São Paulo, Editora Giostri, 2016). É o editor da revista eletrônica "Pandora Brasil". Participa com frequência em congresso internacionais e eventos de filosofia.



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