A POÉTICA DO RECONHECIMENTO em Fernando Pessoa

Joice Cristina Soares(*)


As duas análises precedentes servirão como perspectiva para a análise do poema de Fernando pessoa, intitulado Eros e Psiqué. Este poema de imediato alude ao mito grego homônimo, mas nossa tentativa é a de demonstrar como, a partir de Ricoeur e Hegel, nossa interpretação se desliga desse sentido imediato para incorporar o de uma ilustração da questão do reconhecimento e da hermenêutica do si de que tratamos até aqui.

Mais uma vez cabe ressaltar que não pretendemos aqui elaborar um estudo da obra de Fernando Pessoa. São tantas as questões que Pessoa nos coloca, que mesmo este poema que escolhemos pode suscitar discussões das mais diversas, em várias esferas diferentes. Entretanto, as questões referentes ao sujeito abordadas por Pessoa são recorrentes, motivo pelo qual integra nossa bibliografia uma obra que estuda o aspecto filosófico de sua obra.

Eros e Psiqué
Conta a lenda que dormia
Uma Princesa encantada
A quem só despertaria
Um Infante, que viria
De além do muro da estrada.

Ele tinha que, tentado
Vencer o mal e o bem,
Antes que, já libertado,
Deixasse o caminho errado
Por o que à Princesa vem.

A Princesa Adormecida,
Se espera, dormindo espera,
Sonha em morte a sua vida,
E orna-lhe a fronte esquecida,
Verde, uma grinalda de hera.

Longe o Infante, esforçado
Sem saber que intuito tem,
Rompe o caminho fadado,
Ele dela é ignorado,
Ela pra ele é ninguém.

Mas cada um cumpre o Destino
Ela dormindo encantada,
Ele buscando-a sem tino
Pelo processo divino
Que faz existir a estrada.

E, se bem que seja obscuro
Tudo pela estrada fora,
E falso, ele vem seguro,
E vencendo estrada e muro,
Chega onde em sono ela mora,

E, inda tonto do que houvera,
A cabeça em maresia
Ergue a mão, e encontra a hera,
E vê que ele mesmo era
A Princesa que dormia.

O mito de Eros e Psiqué conta a história de Eros, filho da deusa Afrodite, personificação do amor e do “desejo dos sentidos”, e Psiqué, personificação da alma, uma princesa mortal de beleza inenarrável, por quem Eros se apaixona. Psiqué era a terceira e última linda filha do rei de certa cidade. Embora suas irmãs fossem também muito bonitas, sua beleza, porém, era algo de tão impressionante que os homens, ao invés de cortejá-la, adoravam-na, como se ela fosse a encarnação da própria Afrodite. Sabendo dos cultos que eram feitos pelos homens à beleza de Psiqué e da associação que faziam dela à sua divindade, Afrodite, tomada de ódio, teria ordenado a seu filho, Eros, que atingisse Psiqué, de modo que ela se inflamasse de amor pela criatura mais horrível que existisse sobre a Terra.

Na Terra, por sua vez, o rei e pai de Psiqué, temia pela fúria dos deuses e que seu reino fosse punido pela beleza de sua filha. Ao consultar o Oráculo de Apolo, foi orientado a vestí-la como que para a morte, e a deixá-la no alto de um penhasco a fim de que um monstro a arrebatasse. Eros parte para sua missão, mas, encontrando Psiqué, fere-se ele mesmo com a flecha a ela destinada, fere-se de amor por Psiqué. Mais que depressa ordena que Zéfiro, o vento, a transporte daquele penhasco e a leve para um planalto em segurança. Psiqué, que até então desconhecia o que havia lhe acontecido, acorda em um palácio adornado com ouro e marfim, em meio a um bosque com campos floridos. Lá, ela é servida por vozes que lhe fazem todas as vontades. À noite Eros, sem se revelar, possui Psiqué, e antes do amanhecer, desaparece.

Temendo que sua mãe descubra que a ordem não foi cumprida, Eros se mantém em segredo amante de Psiqué, e, a ventura dessa vida era tão grande que ela aceita como preço não ver o rosto do seu amado. Enquanto isso, as irmãs de Psiqué choram o triste destino da irmã, acreditando que ela fora arrebatada por terrível monstro. Eros orienta a Psiqué, que não responda quando as irmãs vierem chorá-la aos pés do penhasco, mas diante das súplicas dela, ele cede, e logo Psiqué estava com suas irmãs em seu encantado palácio, narrando seus dias no paraíso. Cheias de inveja dissimulada em cuidado, as irmãs passaram a envenená-la, dizendo o quão absurdo era que Psiqué não conhecesse o rosto de seu amante, pois ele poderia ser um monstro que estivesse esperando o momento oportuno para devorá-la, lembrando-lhe as previsões do Oráculo. Psiqué, tendo dado ouvidos ao despeito disfarçado em advertência das irmãs, espera que Eros adormeça. Para este momento, recorreremos à citação de Junito:

Eros a seu lado dormia tranqüilamente. Como fora de si, a jovem esposa reuniu todas as suas forças: numa das mãos o candeeiro, na outra o punhal. Muito de leve aproximou a luz do rosto do marido. Estava revelado o grande segredo: viu a mais delicada, a mais bela de todas as feras. Eros, o deus do amor, ali estava diante de seus olhos. A jovem empalidece, treme, cai de joelhos. Olhando-o, contempla-o embevecida e "especulando-o", Psiqué, como Narciso, não mais pôde tirar os olhos dele. Quis matar-se, mas o punhal se lhe resvalou da mão. Percebendo ao lado do leito a aljava e as flechas do deus, ao tocá-las, acabou ainda por ferir-se com uma delas. Agora, mais que nunca, sua paixão seria eterna. Inflamada de amor, inclina-se sobre ele e começa a beijá-lo como louca. Esquecida do candeeiro, deixa-o curvar-se em demasia e uma gota de óleo fervente cai no ombro do deus adormecido. Eros desperta num sobressalto e, ao ver desvendado seu segredo, levantou vôo no mesmo instante; sem dizer uma só palavra, afastou-se rapidamente da esposa. Esta ainda tentou segui-lo através das nuvens, segurando-lhe a perna direita, mas, exausta, caiu ao solo. (BRANDÃO, 1987, p. 213-214)

Desesperada, Psiqué tenta dar cabo da vida diversas vezes, mas não lhe é permitido; pede ajuda das deusas Hera e Deméter, que se recusam, por não desejarem atritos com Afrodite; por fim, resolve entregar-se ao ódio de Afrodite. A deusa suplicia Psiqué de várias maneiras e ao final lhe dá quatro tarefas propositalmente inexequíveis, das quais Psiqué certamente declinaria ou morreria. No entanto, embora se entregasse à impossibilidade antes mesmo da tentativa, Psiqué foi ajudada, ou por criaturas ou por deuses, e executou perfeitamente cada uma delas, sendo que na última, cuja tarefa incluía uma descida até o Hades, Eros intercede diante de Zeus por Psiqué, que é levada ao monte Olimpo, onde lhe é concedida a imortalidade. Dado o consentimento de Zeus e os demais deuses, Eros e Psiqué se “re-uniram” para sempre.

Junito de Souza Brandão, a partir de Erich Neumann, elabora em seu livro sobre mitologia um perfil psicológico do mito de Eros e Psiqué cuja pertinência não nos é permitido contestar. No entanto, antes mesmo de descobrir a descrição dessas personalidades e mesmo uma citação do poema finalizando o capítulo a eles dedicado, o contato imediato com esta leitura suscitou uma interpretação que não se assemelha à de Junito, nem à de Neumann, nem à do próprio mito por si mesmo. Isto porque participa agora de um outro mundo, diferente desses mencionados, e, por isso mesmo, adquiriu uma conotação muito particular.

Ainda que se saiba de que tratam as instâncias representadas por Eros e Psiqué (amor e alma, respectivamente) o poema de Fernando Pessoa, num primeiro momento, não parece seguir o percurso do mito. No poema, quem enfrenta todas as dificuldades de um caminho “obscuro” e “falso”, quem busca o rosto do outro não é Psiqué, mas Eros. A história parece invertida. Mas esse itinerário, além de aparentemente invertido, confunde-se com uma trajetória descrita anteriormente, ainda que em outros termos, por Hegel: a figura da Bela Alma.

Como vimos, o encontro das duas almas/consciências da Fenomenologia, tem como momento inicial o movimento de apenas uma das consciências, que renuncia a si mesma para reconhecer a outra e com isso espera a reciprocidade. Antes que se reconheçam mutuamente, o processo solicita que se reconheçam a si mesmas e se percebam em sua incompletude, para que só aí possam ter ciência daquilo que lhes falta e que só pode ser fornecido pela outra a qual se opõem. Mas a bela alma,

“[...] refinada até essa pureza, é a sua figura mais pobre; e a pobreza, que constitui seu único patrimônio, ela mesma é um desvanecer; essa absoluta certeza em que a substância se dissolveu, é a absoluta inverdade, que colapsa dentro de si; é a consciência-de-si absoluta em que a consciência afunda. [...]” (HEGEL, 1992, p. 133)



A bela alma pode, muito facilmente, ser representada pela Princesa de Pessoa. Se pensarmos que Psiqué era donzela, imatura, mas ao mesmo tempo adorada por sua beleza, fato que a transforma numa associação imediata à divindade, é quase como se pudéssemos ter diante dos olhos a bela alma. Ela é bela, mas essa beleza está fundada em uma superioridade vazia, que de tão vazia desvanece. Uma beleza assim tão pura, tão incomum, não pode pertencer ao mundo, deve haver nela algo do divino. Nem mesmo as irmãs de Psiqué, que embora fossem também bonitas, se assemelhavam a ela. Murmuravam como poderia ser tão superior a elas em beleza, sendo Psiqué a filha caçula e “rebento de uma fecundidade já esgotada” (BRANDÃO, 1987, p. 212). A bela alma é “Uma Princesa encantada”, que não sobreviveria à realidade. Está posta para além do dizível, porque ela assim se supõe. É a Princesa, que “Sonha em morte a sua vida”, que não percebe que sua pureza é sua própria decadência, e que sua beleza suficiente e superior esvazia-se em si mesma por não ter quem a reconheça (note-se que na narrativa do mito, os homens que admiravam Psiqué ainda assim não se atreviam a pedí-la em casamento), e por não se reconhecer ela própria como continuidade de outra consciência. No outro extremo temos Eros. Ele personifica nesta interpretação a outra consciência que se opõe à bela alma, ele é o “infante esforçado”, que “Vencendo estrada e muro” age, mas “sem saber que intuito tem”, ele justifica sua ação pela ação e sobre ela não reflete. Trata-se de outro tipo de impulso, que não racionaliza, mas orienta-se por aquilo que o constitui: impulso, ou, como já fora dito “o desejo dos sentidos”. Eros é descrito também como um menino “de maus costumes, corruptor da moral pública e provocador de escândalos” (BRANDÃO, 1987, p. 210). Em determinado momento a bela alma denuncia a maldade em sua oponente, porque ela age, mas também a partir de si mesma, a alma que age é também aquilo que acusa na outra: unilateral “Portanto quem diz que age contra os outros segundo sua lei e boa-consciência, diz de fato que os maltrata” (HEGEL, 1992, p. 136).

Ambas as instâncias, tanto as de Hegel, como as do mito, bem como as de Pessoa, fazem parte de um espírito cindido, “Ele dela á ignorado/ Ela pra ele é ninguém/ Mas cada um cumpre o Destino”, o que pode ainda ser constatado no verso em que Eros “rompe o caminho fadado”, ‘fadado’ porque dele não pode prescindir. Sua busca pela outra tem em seu cerne um encontro mais fundamental: o encontro consigo mesmo. Os dois extremos irão se reconciliar, primeiramente na consciência (cada uma) de si mesma e por fim na aceitação de sua complementaridade necessária. No poema, Eros, quando “Ergue a mão e encontra a hera”, não vê a Princesa que foi buscar, ele depara-se com a figura de si próprio, ele “Vê que ele mesmo era/A Princesa que dormia”. Assim como a reconciliação dos dois tipos de consciência indicados por Hegel, o saber “retorna à unidade”, significando que ambas são a mesma consciência. E assim como quem busca no poema é Eros, a reconciliação se inicia com a atitude da consciência agente, Eros era o único a quem caberia despertar a princesa de Pessoa (“Conta a lenda que dormia/ Uma Princesa encantada/ A quem só despertaria/ Um infante que viria/ De além do muro da estrada). “Deixar o caminho errado” no sentido de que é só no reconhecimento de si mesmo que ele pode se encontrar inteiro.

É do escritor alemão Hermann Hesse a afirmação de que: “a vida de todo ser humano é um caminho em direção a si mesmo” e que “homem algum chegou a ser completamente ele mesmo; mas todos aspiram a sê-lo”. O conhecimento de si é uma questão presente desde os filósofos mais antigos, ao menos até onde sabemos. Mesmo sendo uma questão sempre tão presente, só provisoriamente encontra explicações, porque nenhuma ciência pode exigir sobre si o caráter de portadora definitiva da verdade sobre quem é o homem. Somos sete bilhões de subjetividades. Já que tudo o que temos são perspectivas - antropológica, sociológica, filosófica, psicanalítica, histórica, etc. - parece caber a cada homem descobrir-se a si mesmo, levando em consideração que isso só é possível através do Outro.

O Outro é o elemento mediador da compreensão de si. É percebendo no outro tudo aquilo que não se é que se pode retornar a si e perceber então tudo o que se é. E esse é um movimento de mão dupla, porque o que media é também mediado. Quanto mais outros, outros mundos, outras subjetividades, outras culturas, maior o repertório para esclarecer o que nos diferencia e o que nos aproxima, maior a possibilidade de fazer uma “exegese de si mesmo”. O inverso é também verdadeiro, quanto mais fechado às relações o indivíduo estiver, quanto mais ele colocar a “aparência” daquilo que é acima do que o outro pode lhe acrescentar, menor a possibilidade de enxergar e respeitar aquilo que o outro é, e aí habita o gene da barbárie.

Se não podemos conhecer o Homem, ao passo que cada um é o resultado de um processo muito específico e ao mesmo tempo um projeto de conclusão incerta, podemos encontrar no empreendimento do conhecimento de si um alternativa mais acessível e razoável que ao menos não tenha em mente a aniquilação do outro – sendo este condição para tal empresa – e de tudo aquilo que difere de nós.

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(*) Joice Cristina Soares é formada em Filosofia pela Universidade Mackenzie e professora de filosofia no SESI.



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