SOB LENTES CAMUSIANAS: uma concepção de amor

Dayane Francis (1)


“Eu só conheço uma obrigação: a de amar”, concebeu Albert Camus em seus primeiros cadernos (1935-37), que vieram marcar o início de sua trajetória magistral pelas águas da literatura e da filosofia e, embora nunca tenha se intitulado filósofo, seus escritos sempre içaram saborosíssimas reflexões acerca da existência humana. No ápice de sua juventude, aos 22 anos, o paradoxo do mundo material e da entrega espiritual suscitaram uma concepção de amor despido: uma personificação do entendimento amoroso da terra “Estranha terra esta, que dá ao homem seu esplendor e sua miséria a um só tempo” e do homem, que se dá através da solidão e da sede amar.

“Não há amor de viver sem desespero de viver”.

Albert Camus

Romancista, ensaísta, dramaturgo, jornalista e ativista político, nascido na Argélia em 7 de novembro de 1913. Sua mãe, Catherine Hélène, era descendente de espanhóis e seu pai, Lucien, de origem francesa, foi morto em batalha durante a Primeira Guerra Mundial um ano após seu nascimento.

Pertencendo a uma família da classe operária, rodeado pela miséria que resultaria em inspiração para seus trabalhos, Camus fez parte da geração dos intelectuais do pós-guerra e, apesar das dificuldades impostas por sua origem humilde, conseguiu completar os estudos com a ajuda e o incentivo de amigos e educadores que se maravilhavam com seu enorme potencial.

Além de seus trabalhos denominados “obras de juventude” sendo eles “O Avesso e o Direito” e “Núpcias, o Verão”, escritos entre os anos de 1935 a 1937, Camus cultivava o hábito de transformar cadernos em “laboratório de criação” com diversos tipos de anotações (literárias, filosóficas e autobiográficas), que foram retomadas em cada uma de suas obras.

Embora seu grande sucesso tenha se dado com a publicação do livro “O Estrangeiro” (aclamada façanha da literatura universal), em sua obra denominada “O Mito de Sísifo” (ensaios), o autor disseca a ideia central de seus trabalhos ditos “obras de maturidade” com o conceito do absurdo e avigora ainda mais seu amor pela vida.

Camus escreve:

“Sísifo é o herói absurdo. Ele o é tanto por suas paixões como por seu tormento. O desprezo pelos deuses, o ódio à Morte e a paixão pela vida lhe valeram esse suplício indescritível em que todo o ser se ocupa em não completar nada”.

Vítima de um acidente de automóvel em Villeblevin na França, faleceu em 4 de janeiro de 1960. O autor trazia consigo o manuscrito de “O Primeiro Homem”, seu último romance de caráter autobiográfico, onde sugestionava através de notas a intenção de publicá-lo de forma inacabada. Apesar de interrompida, a carreira do escritor, podemos nos sentir presenteados com um amplo cardápio filosófico-literário recheado de reflexões desafiadoras e apaixonantes.

Ler Camus é renascer da paupérie e dos tesouros acomodados no nosso interior. Podemos aprender sob suas lentes, que:

“Uma certa soma de anos miseravelmente vividos basta para construir uma sensibilidade”.

O exercício de observação do mundo, somado a receptividade ímpar daqueles que conheceram a miséria, foi importantíssimo para sua descoberta de si e do mundo. Legitimando a pobreza material e a riqueza natural ao redor, ele progrediu em direção à constatação do absurdo e sua consequente superação, “a liberdade absoluta diante de meu passado e de mim mesmo”.

É inegável que Camus se consolidou escritor arrebatado por uma “febre lúcida”, transbordando amor pela existência. Ele diz:

“Vida com aparência de lágrimas e sol, vida sem o sal e a pedra quente, vida como eu gosto e desejo, me parece que ao acariciá-la, todas as forças do desespero e do amor se conjugarão”.

A concepção do amor, principalmente nas suas obras de “pré-maturidade”, colide e se funde em uma espécie de felicidade lúcida, na simplicidade e na fome de viver: predicados notáveis de uma identificação corporal com a natureza que o cerca.

“Sob o sol da manhã, uma grande felicidade balança no espaço”

Percebendo que o mundo à sua volta é indiferente a sua existência, no livro “Núpcias, o Verão”, o autor dispõe do exemplo de uma criança que nascera num bairro pobre e se divertia brincando em escadas escuras, apesar do medo por baratas. Neste mesmo cenário, fazendo referências às figueiras, enfatiza que entre elas existe o céu.

É como se o homem, desde sempre, estivesse entre a miséria e luz, o que provoca a inquietação que o desafia a ser feliz.

Afirmava que não há como salvar o homem de sua solidão; da mesma forma, não há como privá-lo da plenitude que a natureza lhe proporciona:

“Há sofrimento e luta para reconquistar a solidão. Mas, um dia, a terra abre um sorriso primitivo e inocente. Então é como se as lutas e a vida fossem apagadas de uma só vez. Milhares de olhos contemplaram essa paisagem, e para mim ela é como o primeiro sorriso do mundo”.

Albert Camus concebe deste modo um amor que nasce da revolta e se fortalece na continuidade do desespero de viver que, todavia, acaba por gerar alegria. Observa:

“Escrever, minha alegria profunda! Consentir ao mundo e ao prazer – mas somente no desnudamento. Eu não seria digno de amar a nudez das praias se não soubesse ficar nu diante de mim mesmo. Pela primeira vez, o sentido da palavra felicidade não me parece duvidoso. É um pouco o contrário do que se entende pelo banal “eu sou feliz”.

Por conseguinte, conclui:

“Penso agora em flores, sorrisos, desejo de mulher, e compreendo que todo meu horror de morrer está contido em meu ciúme da vida. Sinto ciúme daqueles que viverão e para os quais as flores e o desejo de mulher terão todo o seu sentido de carne e de sangue. Sou invejoso porque amo demais a vida para ser egoísta. A eternidade não me importa”.

“Aí está minha pobreza e única riqueza”, desveladas na constante luta do homem que se entrega a uma “admirável vontade de não separar nem excluir nada que sempre reconciliou e reconciliará o coração dolorido dos homens e as primaveras do mundo”.

Imergir em Camus florescer a vida sem desperdiçar as sombras que nela habita. É aprender o amor pela existência através da filosofia.

NOTAS

- Cadernos (1935-37) - Esperança do mundo, Editora Hedra.
- O Avesso e o Direito - Editora Livros do Brasil Lisboa.
- Núpcias, o Verão - Coleção Logos, Editora Nova Fronteira.
- O Mito de Sísifo - Editora Record.
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(1) Dayane Francis é ex-aluna do Curso de Filosofia da Universidade Mackenzie. Poetisa.



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