ABELARDO E HELOÍSA, um amor filosófico
Carolina Ferreira (*)
Abelardo e Heloísa no manuscrito Roman de La Rose, séc.XIV
Tomando o enlace amoroso do século XII entre o abade Pedro Abelardo e sua aluna Heloísa, como um fluir atemporal da relação entre amor e filosofia, é possível compreender um elo quase que impensável de que, tanto o filosofia pode ser um pretexto para o amor, quanto o amor pode ser um convite irresistível à Filosofia.
A reflexão que permeia relação amor e Filosofia, nos remete à irresistível história de dois pensadores do século XII: Mestre Pedro Abelardo e a abadessa Heloísa.
É velha Paris e suas imediações que se desdobra a história de nossos dois protagonistas: Abelardo, jovem clérigo, que abre mão dos benefícios da primogenitura em troca da dedicação à Filosofia – em particular à Lógica – e Teologia. Heloísa, a sobrinha amada do venerando e “econômico” cônego do burgo –Fulbert - que , zeloso pela educação de sua sobrinha, aceita convenientemente e de bom grado que Abelardo se torne o seu preceptor. A respeito disso, testemunha o próprio Abelardo, numa de suas cartas:
“A ingenuidade do ancião me deixou estupefado. Eu não me recobrava do meu espanto: confiar assim uma terna ovelha a um lobo esfaimado! Encarregou-me não apenas de instruí-la, mas de castigá-la sem reservas, caso Heloísa se mostrasse negligente”...
O que se passa, a partir de então, é que o jovem casal se apaixona e, em meio aos exercícios de lógica e aos silogismos aristotélicos, se misturavam experiências amorosas das mais intensas. Como relata o próprio Abelardo, ainda em sua carta autobiográfica:
“Que mais teria a acrescentar? Um mesmo teto nos reuniu, depois um mesmo coração. Sob o pretexto de estudar, nos entregávamos inteiramente ao amor. As lições nos propiciavam esses tête-à-tête secretos que o amor anseia. Os livros permaneciam abertos, mas o amor mais do que nossa leitura era o objeto dos nossos diálogos; trocávamos mais beijos do que proposições sábias. Minhas mãos voltavam com mais frequência aos seios de Heloísa do que aos livros de Aristóteles”...
Nesse momento, a Filosofia é apenas coadjuvante, um mero convite. Não há, em verdade, nenhum diálogo: o amor reina soberano
A intensidade de tais encontros perdura por algum tempo, até que Heloísa engravida e traz ao mundo Astrolábio e os fatos chegam ao conhecimento de todos, inclusive de seu tio.
Abelardo propõe casamento à jovem dama, que se recusa, veementemente, utilizando todos os argumentos que aprendera com seu amante, da Filosofia, da Teologia, e deu próprio coração para demonstrar que um casamento não seria razoável, uma vez que choro e barulhos de crianças não combinam e até atrapalham o silêncio e recolhimento, tão necessários ao estudo da Filosofia.
Abelardo, irredutível aos argumentos de sua aluna e amante, decide casar-se com ela.
Pensando que o mestre não repararia o seu erro, indignado com a honra e integridade ferida de sua sobrinha e sentindo-se traído, o tio de Heloísa manda emascular Abelardo.
E é aí que a Filosofia, começa a desempenhar o seu papel: ela, que até então servira apenas de pretexto, e testemunha do amor dos amantes, assume, de agora em diante, papel principal, trazê-los a à razão e a utilizarem toda a reflexão de fossem capazes, para se resignarem e abafarem o sentimento que ainda ardia no peito de ambos.
A Abelardo coube esse papel. Uma vez extirpado o órgão que o fazia pecar e convencido de que fora alvo da justiça Divina, tomou para si a responsabilidade de persuadir Heloísa a se converter e se arrepender de seu pecado. O Mestre se utiliza de cartas para atingir o seu feito:
“Não te aflijas, portanto, minha irmã, por esse golpe, eu te imploro. Não alimentes amargor para com o Pai que nos castiga tão paternalmente. Pensa nessas palavras da Escritura: ‘Deus corrige aqueles que ama. Ele castiga todos aqueles que adota como filhos’...Essa pena é passageira, não eterna. Ela tende a purificar, não a danar.”
A trágica história desses amantes terminaria aqui, como qualquer conto cavalheiresco da Idade Média. Entretanto, o que se passa a seguir, malgrado o sofrimento dos amantes, é o diálogo travado entre Abelardo e Heloísa.
Ao contrário de Abelardo, a jovem abadessa ainda arde, sente em seu coração e em seu corpo o desejo por aquele que um dia amou:
“Um único ferimento em teu corpo bastou para curar todas as chagas da tua alma... Ao contrário, eu ardo de todas as chamas que atiçam em mim os ardores da carne, as de uma juventude ainda muito sensível ao prazer e a experiências das mais deliciosas volúpias.”
E nas cartas trocadas entre os esposos, se estabelece o belíssimo embate entre o amor cortês, que resiste a todo custo, que reclama do objeto amado, que arde e sangra, que se desespera e inflama e a Filosofia, que se utiliza de todos os recursos – inclusive o de recorrer às autoridades da Teologia - para acalmar e transfigurar esse amor humano em amor cristão. Para Abelardo, o amor proibido no mundo, deveria encontrar asilo na eternidade. De esposa e amante, Heloísa se transforma em irmã no Cristo.
Falar de amor e Filosofia ou, na relação que se estabelece entre ambos, não tem que ser necessariamente intempestivo, belicoso, uma vez que filosofar é também estabelecer uma relação amorosa com o saber. Entretanto, diferentemente da nobreza socrática, da incompletude platônica ou da amenidade aristotélica, pensar o amor no contexto abelardiano é adentrar com profundidade os caminhos percorridos por esta relação, para além de dos mestres. É sentir o amor nas suas diversas nuances: de amantes do saber se tornam amantes do corpo. De amantes do corpo se transformam, novamente, em amantes do saber para, sacrificando o desejo, se tornarem, enfim, amantes de Deus.
Ainda hoje, é possível conhecer o brilhantismo do filósofo Pedro Abelardo e sua inegável agudeza de espírito, ao adentrar numa das principais dificuldades de seu tempo, a saber, “A querela dos Universais”, ou ainda na sua “Ética”, onde é abordado o problema da intenção. É, sem dúvida, na obra que as ideias filosóficas se desenrolam com maestria e beleza.
Entretanto, poderão questionar: se a obra de Abelardo é tão bela, por que perder tempo, mencionando sua vida e suas aventuras amorosas com Heloísa?
É porque, caros leitores, parece que o tempo se encarregou de inverter os papéis na relação entre amor e Filosofia nesta história: se antes, a Filosofia era um pretexto para viver o amor cortês, em nossos dias é o amor cortês de Heloísa e as cartas trocadas pelos esposos que nos incita a curiosidade, que nos convida à adentrar a Filosofia abelardiana. Trata-se de uma relação um tanto intempestiva, é verdade, mas necessária, haja vista que, conhecer previamente a vida de Abelardo, nos afeiçoamos ao homem. E ao nos afeiçoarmos ao homem, nos aproximamos do filósofo.
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(1) Correspondência de Abelardo e Heloísa/ texto apresentado por Paul Zumthor [tradução de Lúcia Santana Martins]. São Paulo, Martins Fontes, 2.000.
(2) IDEM. De Abelardo a um amigo (também conhecida como A história das minhas calamidades), pág. 40 e 41.
(3) Nome de origem grega, que significa instrumento que mede a distância entre as estrelas.
(4) Emascular: castrar; retirar a possibilidade de procriação.
(5) IDEM. Ibidem. De Abelardo à Heloísa, pág. 144.
(6) IDEM.Ibidem. De Heloísa a Abelardo, pág. 120.
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(*) Carolina Ferreira é graduada em filosofia pelo Mosteiro de São Bento e trabalha como professora de Filosofia na E. E. Profª. Bernadete Aparecida Pereira Godói - PEI