AMOR E RAZÃO EM SUAS FUNÇÕES CÓSMICAS. Um breve passeio por alguns diálogos de Platão.

Anna Padoa Casoretti (*)


Em meio à trama dos diálogos platônicos que se inserem na conjuntura da Teoria das Ideias, o Fedro e o Banquete são os elos que traçam o destino do homem – sempre em linha de ascese espiritual, de abstenção gradativa dos elementos que perturbam a sophrosýne – de forma a, mesmo enveredando por caminhos diferentes, se concluírem com o elogio ao amor. A temática principal do Banquete são as diversas gradações do amor, onde é estabelecida uma hierarquia de suas formas. No Fedro, o elogio ao amor, através das palavras de Sócrates, alcança seu vértice quando versa sobre sua integração com o plano inteligível. Nos dois diálogos, o ápice do amor ocorre na contemplação das Formas ideais e este momento está invariavelmente relacionado a um processo racional. A forma mais elevada do Amor platônico está, pois, relacionada com a Razão. Que tipo de amor é esse que, de forma imperiosa, alinha-se com a racionalidade, tornando ambos partícipes de um processo cósmico?

Para tratar do amor, será preciso abordar o tema da alma. As várias gradações do amor têm seu centro na alma humana, sendo que esta não deverá ser definida como uma única parte coesa e homogênea: em alguns de seus diálogos, como Leis, República, Timeu e, principalmente, o Fedro, Platão deixa transparecer sua intuição acerca da existência de distintas “partes” da alma. Partes cujos núcleos se interpenetram sem se confundirem. Apesar de comunicantes, as partes têm sua sede em órgãos distintos do corpo material, tendo, como consequência, atribuições distintas. Esse ponto será retomado adiante.

Primeiramente, retrocedamos com Platão à Origem do Mundo. Antes da formação das almas humanas, havia a Alma do Mundo, fonte de todo o conhecimento, existente em estado de perfeição e imutabilidade, como nos é contado no Timeu (30-37). Por alguma razão, houve a “queda” de uma de suas partes, que veio a se fragmentar. Inicialmente, esses fragmentos da Alma original permaneceram junto à abóbada do universo, de onde contemplavam as Ideias. Com o movimento circular do universo, entretanto, os fragmentos foram se desprendendo da abóbada e, em uma queda seguinte, encontraram fragmentos de matéria, a khora, onde fizeram sua morada (Timeu, 52). A união de um fragmento da Alma com um corpo material, auxiliada pela interferência voluntária do Demiurgo, deu origem ao que chamamos homem. Assim, em sendo as almas dos homens provenientes da matriz da Alma Universal, conservam em si uma parte do elemento primordial que as torna capazes de transitar, como seres intermediários, entre o mundo sensível e a Realidade Inteligível.

Em sua origem, a alma humana, mesmo sendo fruto de uma queda, possuía asas e se encontrava ainda próxima aos deuses; entretanto, o contínuo movimento circular as lançou sobre a terra, causando a quebra de suas asas, como se lê no Fedro. Através do Mito do Cocheiro, Platão narra a sequência de acontecimentos decorrentes de sua criação, comparando a alma dos homens com uma carruagem alada, puxada por dois cavalos e guiada por um auriga. Em sua descrição, os dois cavalos são bem distintos, tanto em suas raças quanto nos caráteres: enquanto um é nobre e benévolo, o outro é impulsivo e colérico. Isso torna difícil ao cocheiro a operação de conduzi-los.

As almas, enquanto dotadas de suas carruagens com asas, conseguem voar pelas estradas celestiais procurando chegar à abóbada da Ordenação, onde então poderão contemplar aquilo que está além do tempo, o Hiperurânio. Ocorre que, para as almas de tipo humano, constitui uma árdua empresa alcançar o estado de contemplação e apascentar-se na “Planície da Verdade”, especialmente por causa do cavalo irascível, que as quer puxar para baixo. Algumas almas conseguem contemplar as Formas, ou, pelo menos, parte delas, e, por essa razão, permanecem aladas. Mas outras, ao contrário, não conseguem manter-se nesse estado, ou, simplesmente, sequer alcançam a visão das Realidades, em razão dos conflitos entre os seus cavalos; sempre que isso acontece, as asas se quebram e as almas, cada vez mais pesadas, tornam a se precipitar sobre a terra (Fedro, 246-248).

Contudo, e apesar de todos os percalços, as asas das almas podem voltar a se refazer, e seu limite é toda a Eternidade. Isso se torna possível através do Amor. E o Amor que permite o refazer das asas é aquele que desperta através do correto uso da razão. Vejamos.

Os dois cavalos e o auriga formam a ilustração que representa os três elementos com os quais o Demiurgo forjou a alma no Timeu. Indo além, e ingressando na questão da divisão da alma, pode-se inferir que o cocheiro representa a razão e os dois cavalos representam as partes alógicas da alma. A questão de partes distintas na mesma alma não está diretamente esclarecida em nenhum diálogo platônico. Mas o influxo pitagórico, comprovadamente presente em muitos diálogos, mostra suas marcas em cada uma das passagens em que Platão trata das formas de conhecimento da alma e dos processos dialéticos a seu dispor: formas essas que separam, em redutos distintos, as sensações, as crenças, as formas de raciocínio dedutivo e, finalmente, o noûs. Filolau, o pitagórico, já havia postulado determinadas “divisões anímicas” quando inscreveu, como mostra seu fragmento 13, a aésthesis e a psyché no coração, e o noûs no cérebro (1).

Não seria estranho, portanto, que Platão admitisse a coexistência dessas “repartições” da alma e sobre elas fundamentasse as formas humanas de obtenção de conhecimento. Estas partes estariam dispostas, como anteviu Filolau, entre o cérebro e o coração, recebendo distintas denominações, de acordo com sua função. No coração, encontram-se a sede da aésthesis – princípio das sensações, que permite as apreensões sensoriais – e da psychè – princípio relacionado às emoções, paixões e afecções. Sediada no cérebro, está a “alma pensante”, o noûs, o princípio da mente, que persiste sem a intermediação dos sentidos ou emoções – a parte da alma à qual Platão atribuía divindade e imortalidade.

Existem, portanto, duas distintas naturezas da alma que compartilham o coração como sua sede, e que se alinham com o mito platônico dos dois cavalos: o cavalo irascível está ligado às sensações trazidas pelos sentidos, escravizado por seus instintos; o cavalo benévolo está ligado aos sentimentos e emoções, que podem ser bastante nobres. Apesar de suas diferenças, ambos encontram-se submetidos a seus desejos terrenos. Em concomitância, existe uma terceira parte da alma que detém o elemento racional: é o cocheiro, que com grande resiliência tenta manter em equilíbrio os dois cavalos, esforço tantas vezes malogrado.

As partes da alma constituem uma hierarquia, e é com a parte mais elevada, a sede da razão, que o ser se identifica propriamente. Por que ele se identifica com a parte racional da alma se, como lemos em Platão, o homem é uma combinação de alma e corpo, tendo parte de sua alma atrelada à matéria? Porque o ser não pretende “ser dominado pelo prazer”, mas, pelo contrário, quer “ser senhor de si próprio” (Protágoras, 357). É na parte do eu capaz de realizar a vontade que o ser se reconhece – e não nos desejos que controla, ou pelos quais é controlado. O homem age em níveis situados abaixo da alma racional quando permite que o impulso e os apetites prevaleçam, quando entrega o comando ao cavalo irascível, ou quando consente ao cavalo benévolo que se distraia com os confortos das afecções. Esta é a primeira razão para a primazia da alma racional.

A segunda e mais profunda razão platônica para que o ser se identifique com a parte racional da alma está no fato de que a alma capaz de estabelecer relações com as Ideias só poderá ser a alma racional. Somente essa parte da alma – e não os dois “cavalos” que querem arrastá-la – poderá entender as Ideias. Essa atribuição reside em sua natureza que tem “afinidade com a Realidade e se une a ela” (República, 490).

No entanto, mesmo reconhecendo-se em seu princípio racional, mesmo ansiando por desvencilhar-se das armadilhas do corpo, onde o ser encontra o impulso necessário para proceder à “elevação”? Pois, estando a Alma atrelada a um corpo material, facilmente poderia incorrer em erro – aquilo que, em sentido platônico, ocorre quando há a identificação com os desejos e ilusões da matéria –, mantendo-se em perene estado de queda.

Ora, por participação na Alma primordial, a alma humana individual carrega a lembrança de tudo o que já viu e conheceu, tanto a realidade do mundo celestial quanto a realidade deste mundo (Mênon, 81). O conhecimento das Ideias, “realidade intangível, mas extremamente real” (Fédon, 247), está gravado em si. Essa constrita reminiscência cria um vetor de busca: a alma se sente atraída por aquilo que já conheceu e que se perdeu. A sua carência propicia o despertar do amor em seu grau inicial, visto que o amor é essencialmente uma procura. O processo da geração amorosa, exposto por Diotima, no Banquete, retrata uma ascensão por degraus que, partindo do amor em sua forma instintiva, em trajes de paixão, deflagrado pela visão de uma bela imagem estética, atinge sua forma mais elevada ao contemplar a Ideia onde reside toda a Beleza. Essa lenta e metódica ascensão comunga com um progressivo domínio sobre as partes inferiores da alma, trazido pelo avançar do procedimento dialético e impulsionado pelo amor que, pouco a pouco, vai se transfigurando em sua forma superior. A transfiguração é a principal característica da concepção platônica do amor, muito distante da comum acepção do amor platônico.

A vitalidade com que a alma reage à presença do conhecimento tem a mesma força de reação com que os sentidos reagem à presença de um objeto de seu desejo. Aquele fragmento da Alma original contido na alma humana não apenas permite as lembranças do Inteligível como, ao mesmo tempo, instiga e dá direção à alma. Isso ocorre através de uma forte atração, um magnetismo propulsor que se inicia na sede do coração e que, atingindo sua forma suprema, torna-se firme vontade direcionada às Realidades perdidas (Banquete, 201-204). Assim como a alma, o Amor platônico é um ser intermediário entre os deuses e os mortais; tem a função de manter em contato os dois mundos, completando o universo. A posição intermediária do Amor atribui-lhe movimento, assim como ocorre com a alma.

A razão, em seus níveis instrumentais iniciais, propicia o despertar da força impulsionadora quando se volta em direção ao conhecimento; ascendendo, criará o campo para o crescimento do amor; transfigurado, será dessa vez o Amor a permitir o ingresso do ser na dimensão do noûs:, quando, através de sucessivos momentos de nóesis, será possível voltar a contemplar as Ideias. Assim, através da comunhão de Amor e Razão, ocorre o encontro com a Verdade esquecida e torna-se possível harmonizar alma e Espírito na constituição do Universo.

Referências Bibliográficas

CORNFORD, FRANCIS. Plato's Cosmology. The Timaeus of Plato. Hackett Publishing Company. Indianapolis, 1997.
DIELS, HERMANN; KRANZ, WALTHER. I Presocratici. Bompiani. Milano, 2012.
DIOGENE LAERZIO. Vite e Dottrine dei più celebri Filosofi. Bompiani. Milano, 2006.
GUTHRIE, W.K.C. A History of Greek Philosophy. Cambridge University Press. 2003.
PLATONE. Tutte le Opere. Newton Compton Editori. Roma, 2010.
ROBIN, LÉON. Le Banquet. Belles Lettres. Paris, 1929.
ROBIN; VICAIRE; MORESCHINI. Platon. Phèdre. Paris, 1985.

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(1) Filolau, Da Natureza, fragmento 13, citado em Theologumena arithmeticae, p.25,17 De Falco (18 B13 D.K.). **************

(*) Anna Padoa Casoretti é Bacharel e Mestre na área de Filosofia Antiga. Doutoranda em Filosofia pela PUC-SP.


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