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HEIDEGGER E A TEORIA DO CONHECIMENTO
DE SANTO AGOSTINHO: VERDADE SUPREMA.
Márcia Guimarães Rivas
Aluna co Curso de Filosofia da Universidade Mackenzie
O desejo do verdadeiro foi o que sempre mobilizou a filosofia suscitando filosofias. Sócrates já andava pelas ruas e praças de Atenas indagando se as pessoas sabiam verdadeiramente o que eram as coisas que acreditavam. Platão fazia uma reflexão sobre a verdade como sendo algo fixo que não apresentava mudanças. Descartes desenvolveu um instrumento intelectual, “dúvida metódica”, para verificar o conhecimento verdadeiro, isto é, aquele que resiste ao processo da dúvida. Espinosa dizia estar apresentando, não a melhor filosofia, mas a verdadeira. Assim, podemos verificar a persistente busca pela verdade na historiam da filosofia.
Na idade média, encontramos esta busca também em Santo Agostinho e faremos aqui um breve estudo sobre esta questão, comentada e analisada por um dos maiores pensadores da atualidade, Martim Heiddeger.
Porém, antes de nos atermos a tal análise, considero pertinente entendermos minimamente a idéia de verdade para Santo Agostinho. No dicionário de filosofia encontramos uma respeitável descrição do tema em questão:
A “teoria do conhecimento” de Sto. Agostinho é representada por um lado, pela “afirmação da realidade da alma como ser das verdades; pelo outro, a afirmação da realidade da Verdade suprema como foco e origem dessas verdades... A integração desses elementos é conseqüência de uma visão da alma como algo a um só tempo íntimo e racional, isto é, como experiência e razão. A doutrina agostiniana da ”iluminação interior“ é a formulação dessa integração de duas verdades: a que vem da alma e a que chega à alma proveniente de Deus”.[1]
Tanto para Agostinho como para Platão, a verdade é algo imutável que não se altera. Esta certeza deve ser alcançada pela alma racional, pois só ela tem a capacidade de alcançar verdades eternas que dizem respeito a objetos que existem. Essas verdades são “tesouros verdadeiros” que se encontram na alma, mas não como meros entes de razão e imaginação, pois se assim fosse seriam “ilusão e engano”.[2]
A busca dessa verdade não é um método, mas um processo, “um caminho espiritual”, e por conta disso não apresenta um caráter exclusivamente contemplativo com a busca do conhecimento, mas também ativo na fé e no amor. Essa verdade deve ser compreendida, com o conhecimento do que é, e a experiência de como é.
Segundo Ferrater Mora, Sto. Agostinho acreditava que a verdadeira felicidade só era possível ser alcançada pela posse da verdade completa: “verdade que deve transcender todas as verdades particulares, pois do contrário não seria, propriamente falando, uma verdade”. A medida absoluta de todas as coisas possíveis, que por sua vez, é entendida como a “Medida Suprema”: Deus.
O olhar heidegeriano sobre a Beata Vita
Tendo compreendido o significado de Verdade para Santo agostinho, podemos nos debruçar sobre a busca da “beata vita” que, para o autor, só é possível ser alcançada por aqueles que encontram a Verdade Suprema.
No livro X, das Confissões, Agostinho faz algumas considerações sobre a felicidade que se encontra na verdade. Faremos a seguir uma leitura, à luz da análise fenomenológica heidegeriana, encontrada na obra “Estúdios sobre mística medieval”, de Martin Heidegger.
Para Santo Agostinho:
“...todos querem uma vida feliz. Mas como a carne combate contra o espírito e o espírito contra a carne, muitos não fazem o que querem, mas entregam-se àquilo que podem fazer. Com isso se contentam porque aquilo que não podem realizar, não o querem com a vontade quanta é necessária para o poderem fazer... Todos são categóricos em afirmar que a preferem na verdade, como em dizer que desejam ser felizes. A vida feliz é a alegria que provém da verdade.... todos querem a alegria que provém da verdade”[4] .
Temos nesta passagem a constatação da dificuldade de muitos em encontrarem a felicidade, e para Agostinho, esta se explica em parte pelo conflito existente entre o corpo e o espírito. O embate interno que impossibilita muitos, na realidade, a grande maioria, de buscarem a verdade tão desejada.
Heidegger faz algumas considerações a este respeito. Entende que as pessoas não encontram esta alegria dentro de si por dedicarem-se em sua agitação interna, às baixezas a que se entregam; o que lhes fazem ainda mais desgraçados ” ( potius miserus: os leva a perder de modo crescente a vida feliz)”[5] .
Mas a voz interior continua reclamando seus direitos, esse algo de verdade que se encontra sutilmente na memória e ele pensa que isto é suficiente para fazê-lo feliz. “(o que fracamente e de modo apenas audível, entre o ruído interior da agitação e o alvoroço, deixa ouvir sua voz reclamando seus direitos; a fala interior na confissão)”.[6]
Agostinho também ressalta que a verdade só pode ser amada e desejada porque se encontra na memória de alguma maneira. “Não a poderiam amar, se não tivessem na memória qualquer noção de verdade”.[7]
E acrescenta:
“Por enquanto ainda há uma luz entre os homens”. Caminhem, caminhem depressa “para que as trevas os não surpreendam!”.[8]
Aqui, segundo Heidegger,” lumem tem um sentido existencial de execução muito específico no experimento intra-mundano fáctico e não tem que ser tomado metafísica e cosmicamente” . Isto é, esse brilho que se encontra no interior do ser é ontico e não ontológico.
Mas esta verdade tão desejada e perseguida acaba por gerar o ódio, inclusive, daqueles que a amam. Segue a fala das Confissões a esse respeito:
Por que é que a verdade gera o ódio? Por que é que os homens têm como inimigo aquele que prega a verdade, se amam a vida feliz que não é mais que a alegria vinda da verdade? Talvez por amarem de tal modo a verdade que todos que amam outra coisa, querem ser enganados, não se querem convencer de que estão em erro. Assim, odeiam a verdade, por causa do que amam vez da verdade. Amam-na quando os ilumina, e odeiam-na quando os repreende. Não querendo ser enganados e desejando enganar, amam-na quando ela se manifesta e odeiam-na quando os descobre. Porém a verdade castigá-los-á, denunciando todos os que não quiserem ser manifestados por ela. Mas nem por isso ela se lhes há-de mostrar.[10]
E Heidegger a esse respeito indaga:
“A que se deve, pois, que a autentica verdade não seja amada, se não mais bem odiada, quando aparentemente o esforço por consegui-la não é cansativo, é algo que está aí (naturalmente), seu? Na vida fáctica (condição humana) os seres humanos vislumbram de uma outra maneira algo justo e valioso e vivem em e para eles desde o reconhecimento de sua importância. Na medida em que este “viver” e este experimentar é já um entregar-se a ele em colocar-se num caminho para ele, é e se converte de vez naquilo que dá satisfação ao esforço pela verdade. Queriam que isto que amam fosse a verdade, essa verdade que é precisamente o que se ama, algo em cujo amor se crê através da tradição da moda, da comodidade, do medo da inquietude, do medo de sentir-se de repente no vazio, algo que é precisamente em e com esta queda da execução, o que passa a converter na “verdade”. Uma verdade que é ela mesma, e seu sentido, assumida nesta modificação, isto é, não se retrocede apenas do vazio, senão real e primariamente desde o movimento para ele.
... se negam a reconhecer seu erro. Um esforço assumido, em qualquer caso, de modo nem genuíno nem radical pela verdade que lhes manter aprisionados ao erro. Amam a verdade quando se manifesta a si mesmo, a odeiam quando lhes mostram, lhes manifestam a eles; a amam quando vem luminosamente ao seu encontro (e os leva mais além através de seu brilho), quando podem obter uma satisfação de ordem estética de tanto fulgor, deixando-se assim levar até a negligência e o desânimo. Mas a odeiam quando lhe golpeiam o corpo. Quando lhes afeta diretamente e os sacode, quando põe em questão sua própria facticidade; em seguida, é melhor separar-se dela a tempo, e entusiasmar-se com todos os lugares comuns..”[11]
É assim, é assim, é assim também a alma humana: cega, lânguida, torpe e indecente, procura ocultar-se e não quer que nada lhe seja oculto. Em castigo, não se pode ocultar à verdade, mas esta oculta-se-lhe. Apesar de ser tão infeliz, antes quer encontrar a alegria nas coisas verdadeiras do que nas falsas. Será feliz quando, libertada de todos as moléstias, se alegrar somente na Verdade, origem de tudo o que é verdadeiro.[12]
Desse modo, o homem consegue que a verdade permaneça oculta, até ele não estar mais diante dela. Todavia, o que há agora que compreender é sensivelmente o seguinte: que também neste atrincheirar-se contra a verdade, nesse feichar-se a ela, o homem a ama mais que o erro, esforçando assim pela vida feliz.
Mas a autentica vida feliz somente a alcançará quem não se acomodar e auto-mascarar a verdade, fazendo com que sejam verdadeiras todas as coisas.
O gozo da vida feliz, e concretamente o gozo da verdade, entendido como referido existencialmente à vida feliz.
A partir da reflexão Heidegeriana e da leitura direta do texto de Agostinho podemos perceber que a Suprema verdade é o meio de encontrar a felicidade. Todavia este é um processo que deve acontecer de desvelamento do ser, e para tal há que se olhar de frente, verdadeiramente. Este encarar-se, porém, não é acolhido por todos, na realidade poucos se propõem a ver-se de fato.
Para Santo Agostinho, essa busca da verdade esse desvelar-se é o único meio de encontrar a Verdade, e se dá de duas maneira: pela alma e pela verdade suprema que contém toda a verdade.
Bibliografia
Heidegger, M. Estúdios sobre mística medieval. Fondo de Cultura Econômica, México, 2003.
Ferrater Mora, J. Dicionário de Filosofia, Tomo I. Ed Loyola, São Paulo, Brasil, 2001.
Sto Agostinho. Confissões. Porto, 1977.
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NOTAS
[1]Ferrater Mora, J. Dicionário de Filosofia, Tomo I. Ed Loyola, São Paulo, Brasil, 2001, pg. 60.
[2]Idem.
[3]Idem.
[4]Santo Agostinho. Confissões, Ed. Imprensa, Porto, 1977, pg 263.
[5]Heidegger, M. Estúdios sobre mística medieval. Fondo de Cultura Econômica, México, 2003, pg. 52.
[6]Idem. pg. 52.
[7]Sto Agostinho. Confissões. Porto, 1977, pg. 264.
[8]Idem, pg. 264.
[9]Heidegger, M. Estudiossobre mística medieval. Fondo de Cultura Econômica, México, 2003, pg. 53.
[10]Sto Agostinho. Confissões. Porto, 1977, pg. 264.
[11]Heidegger, M. Estúdios sobre mística medieval. Fondo de Cultura Econômica, México, 2003, pg.53.
[12]Sto Agostinho. Confissões. Porto, 1977, pg. 264.
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