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O “LIVRE QUERER” E O MAL
NO PENSAMENTO TEOLÓGICO EM CONFISSÕES

Suelma de Souza Moraes
Doutora em Ciências da Religião (UMESP)


Resumo

Trata-se da tentativa de elucidar o significado da experiência do mal no pensamento teológico-filosófico de Santo Agostinho nas narrativas em Confissões. Tem como ponto de partida a pergunta pela origem do mal e da miséria humana em Confissões, que associa a concepção do mal à livre determinação da vontade e a finitude humana. Agostinho, ao perguntar pela origem do mal a partir da criação de um Deus bom, entende que o mal é nada, ele é somente ausência do bem, a privação do ser em Deus. A questão fundamental é como explicar que a vontade do ser humano tenda para a positividade do mal. O ser humano estaria capacitado à escolha do “livre querer” entre o bem e o mal? Qual o alcance da negatividade inerente à liberdade? Palavras-chave: Mal, vontade, Deus, finitude, liberdade.

Introdução

A relação que se dá entre a alma, o corpo e o espírito, é necessária para interpretar o tema do mal em Agostinho. Isto porque o mal no mundo é resultado da liberdade humana, do “livre querer”, ou seja, de suas próprias escolhas, através de sua percepção de mundo, do outro e de si mesmo. Na busca pela origem do mal existe a relação entre o conhecimento de si e o conhecimento de Deus, que apresenta no ser humano uma vontade e contra vontade, um ser que está posto em relação consigo mesmo, com o outro e com Deus, no vir-a-ser.

O mal e a vontade

A raiz da origem do mal tem como problema fundamental para Agostinho explicar como ser criado por Deus e semelhante a Ele, poderia ter a vontade de tender para o mal e não para o bem. Pois, estava convencido de que as ações que praticava contra a sua vontade eram sofridas por ele enquanto vítima do próprio pecado.

Quem me fez? Porventura não foi o meu Deus, que é não apenas bom, mas o próprio bem? Donde me vem então o querer o mal e o não querer o bem? Será para haver um motivo para que eu seja castigado justamente? Quem colocou isto em mim, e plantou em mim este viveiro de amargura, embora todo eu tenha sido feito por um Deus tão doce? (Conf. VII, iii, 5).

Como seqüência da busca pela origem do mal, temos a relação entre o conhecimento de si e o conhecimento de Deus, em que apresenta no ser humano vontade e contra vontade, que é o mesmo que dizer que vontade (querer) e poder não são iguais, e como oposto, a este ser, apresenta no conhecimento de Deus, um Deus pleno em que não existe uma vontade maior que o seu poder. Poder e vontade têm a mesma medida e valor em Deus, o que se contrapõe à existência da contra vontade.

Agostinho, ao examinar a causa do mal, viu-se levado pelo desejo de refutar os que negavam que o mal era resultado da escolha livre da vontade, que diziam que, mesmo que assim fosse, deveria-se culpar Deus, porque ele criou a vontade. Os maniqueus questionavam de maneira lógica, que, uma vez que o mal era inegavelmente um fato, resultava que Deus não poderia ser onipotente e perfeitamente bom, ou ele era perfeitamente bom e incapaz de prevenir o mal, mas não queria fazê-lo, o que demonstraria que não era perfeitamente bom.

Desta forma, poderia a vontade do homem ser compelida ao mal?
Nada pode deixar uma mente desejosa exceto sua própria escolha livre. O mal não tem uma existência própria, mas é a perversão da vontade, que ao afastar-se do Ser Supremo, torna-se inferior e vazia. A vontade é quem faz o homem querer ou não querer, existe no próprio espírito a resistência a si mesmo. A vontade é livre.

O espírito manda que o espírito queira, e, não sendo outra coisa, todavia não obedece. Donde vem esta monstruosidade? E porquê isto? Manda, repito o que queira, ele que não mandaria se não quisesse, e não faz o que manda. Mas não quer totalmente. Pois manda somente na medida em que quer, e aquilo que manda não se faz, na medida em que quer, porque a vontade manda que haja vontade, não outra, mas ela mesma (Conf. VIII, xi, 21).

No entanto, outro fato a considerar é uma vontade não plena, que significa que ser livre não é necessariamente ser pleno, pois em parte pode querer e parte não querer. Esta falta de plenitude Agostinho considera como uma doença e enfermidade, porque embora conheça e deseje a verdade, a alma não consegue obedecer plenamente por estar abatida pelo peso do hábito. Neste caso, a razão não é suficiente para o livre querer, pois está implícito o peso do hábito. Trata-se portanto de duas vontades e nenhuma é completa: o que existe numa, falta na outra (Conf. VIII, 9, 21). Assim, o que existe não é ausência da vontade e sim, um ato de vontade em querer e não querer, ou seja, uma vontade e uma contra vontade.

Ao buscar pela origem do mal estabelecia reflexões sobre o conhecimento de Deus e o conhecimento de si, na busca pela semelhança com Deus percebe a dessemelhança, o outro, o diferente em si mesmo e no outro. Nesta busca seu olhar se volta para seu interior, mas não somente para o interior, mas para o interior da alma em que encontra a luz e reconhece a presença do amor.

A busca do conhecimento de si e do conhecimento de Deus é algo a ser revelado, é um ‘já’ e um ‘ainda-não’ é algo a vir a ser;

E logo que te conheci, tu arrebataste-me, para que eu visse que é aquilo que via e que eu, que isso via, ainda não sou. E deslumbrante a fraqueza do meu olhar, brilhando intensamente sobre mim, e estremeci de amor e horror: e descobri que eu estava longe de ti, numa região de dissemelhança, como se ouvisse a tua voz vinda do alto (...) Mas, para mim é bom estar unido a Deus, porque, se não permanecer nele, nem em mim poderei permanecer (...) (Conf. VII, x, 16; xi, 17).

A compreensão do mal passa pela compreensão de si. Não basta apenas existir, mas há que ser em Deus. A priori toda existência é boa por existir da ação de Deus, mas para que realmente exista é necessário permanecer no Criador, e permanecer exige um retorno ao interior da alma, a busca da luz da existência de ser. Pois o mal é tudo aquilo que leva a não existência. Neste sentido, o não existir é o mal, é o afastar-se de Deus é privar-se do Bem. O ponto de partida é a gênese de si mesmo, é a narratividade da construção de si mesmo. O livro VII encerra com a miséria humana de uma alma abatida, de um coração contrito e humilhado, que se contrapõe aos livros platônicos, a soberba da razão que é insuficiente para o domínio da vontade, que muito embora sejam semelhantes na busca pela verdade e luz interior não apresentam o caminho para alcançar a verdade, ou seja, a graça por meio de Cristo, que o leva não somente a contemplar, mas à ação que aponta para o caminho de retorno a Deus. Pois, a razão sem a fé é soberba e não é suficiente para fazer a vontade obedecer. O livro VIII caminha em direção à conversão, o retorno à vontade de Deus, e encontra como dificuldade duas vontades contrárias e considera a si mesmo como o problema, o livre arbítrio, do querer e não querer entre os prazeres da carne, o hábito e, a vontade como virtude, que exigia no agir uma nova direção. Realizava-se essa disputa no íntimo do meu espírito; tratava-se de mim contra mim mesmo (Conf. VIII, xi, 27). No livro IX o ser caminha na busca da inerência a Deus e como inerência a renúncia a si mesmo, como esquecimento de si mesmo.

Os três livros apresentam a polaridade do conhecimento de si, que de um lado temos como conhecimento de si, o livre querer, a contra-vontade que o leva ao afastamento de Deus e conseqüentemente, a não existência, em que gera um esquecimento de si, de sua origem no Criador, do potencial do Bem e o leva ao nada; e por outro, o esquecimento de si que o leva a vontade de renúncia de ‘si-próprio’, ou seja, dos hábitos e excessos que o esvaziam e o levam ao nada, deste modo, a renúncia como inerência a Deus o faz passar para além de si, de transcender o si-mesmo (Conf. IX, iv,10). O esquecimento de si o faz retornar ao seu interior, para encontrar o Bem.

Considerações finais

Quer conhecer o que reconhece no outro como algo que seja fundamental para a sua constituição e interroga por este “algo”, este “algo” possivelmente deva ser respondido com aquilo que conhece de Deus e desconhece nele próprio. Demonstra a insuficiência da vontade e marca fortemente uma deficiência ontológica de coesão, do homem interior. Ignora, desconhece aquilo que pode ou não resistir. Este sujeito que é um quem responsável pelos seus atos e que, necessariamente, deve se autoconhecer.
É, pois, a reflexão que se sobrepõe à imediatidade do sujeito expresso pela primeira pessoa. Para este sujeito não basta dizer ‘eu sou’. Antes, contudo, é necessário que se auto-examine para se reconhecer um ‘eu’ na experiência e na relação com o outro. O ‘eu’ se põe como leitor de si para, na síntese, se tornar consciente de si, ou seja, da consciência da própria fraqueza e força da vontade.

Bibliografia

Santo Agostinho. Confissões. Tradução e notas de Arnaldo do Espírito Santo, João Beato e Maria Cristina de Castro-Maia de Souza Pimentel, Introdução de Manuel Barbosa da Costa Freitas. Notas de âmbito filosófico de Manuel Barbosa da Costa Freitas. Lisboa: Centro de Literatura e Cultura Portuguesa e Brasileira Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2ª.. ed. 2004.

_____. O livre-arbítrio. Tradução e organização, introdução e notas Nair de Assis Oliveira; revisão Honório Dalbosco, 3ª. Ed. São Paulo: Paulus, 1995. (Patrística)




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