Colaboladores|Links|Sobre|home



« voltar




PEDRO ABELARDO E O DIÁLOGO ENTRE CULTURAS: UM DESAFIO FILOSÓFICO MEDIEVAL. Uma abordagem da obra Diálogo entre um filósofo, um judeu e um cristão[1]

Jorge Luis Gutiérrez
Doutor e Mestre em lógica e filosofia da Ciência (Unicamp)
Professor da Universidade Mackenzie.
Professor da Faculdade de Filosofia São Bento



"Estava eu olhando desde o profundo de um sonho quando,
eis que três homens que avançavam por diferentes caminhos
se apresentaram ante mim.
Ainda em sonhos, perguntei-lhes imediatamente
a que credo pertenciam e por que tinham ido a mim."

(Pedro Abelardo)



INTRODUÇÃO

Pretendo na participação nesta mesa, e nos vinte minutos que me foram atribuídos, trazer um dos textos mais interessantes do período medieval. O Dialogo entre um filosofo, um judeu e um cristão, Dialogus inter Philosophum, Judaeum et Christianum, escrito pelo filósofo Pedro Abelardo (1079-1042 d.C.). Centraremos nossa atenção no prefacio dessa obra, e assim, analisar alguns aspectos do diálogo que nos possam ajudar a refletir sobre o problema proposto: o diálogo entre as culturas como um antigo problema filosófico, e neste caso, como um problema abordado por um autor da alta Idade Média.

Primeiramente algumas breves palavras sobre o autor da obra. Pedro Aberdo nasceu em Falais, França, em 1079. Foi professor de teologia e filosofia em Paris. Foi um dos maiores diáleticos do periodo medieval. Após sua relação amorosa com sua aluna Heloísa abandona su vida de professor em Paris e entra para igreja como monje. Abelardo fo autor de uma obra basta e variada. Escreveu sobre dialetica, etica, logica. Muito conhecido é seu metodo dialetico exposto em seu livro sic et non e a doutrina ética da intencionalidade como critério para julgar a moralidade de uma determinada ação. Morreu em 1142.

Em sua obra Lógica Ingredientibus,[2] Pedro Abelardo lembra que Boécio não denomina qualquer ciência filosofia, más somente aquela que consiste no estudo das coisas mais elevadas. Nessa afirmação de Abelardo é clara a influencia que Aristóteles exerceu sobre ele, pois esta frase lembra muito os primeiros parágrafos da Metafísica. Na Lógica Ingredientibus Abelardo também faz outra afirmação, que se tornou uma das frases mais conhecidas dele: “De fato não damos o nome de filósofos a quaisquer estudiosos, mas apenas aos sábios cuja inteligência se aprofunda na consideração das questões mais sutis.” E um das questões que Abelardo tratou com mais sutileza e grandeza no fim da sua vida foi sobre o diálogo entre culturas. Nessa época escreveu o livro “Diálogo entre um filósofo, um judeu e um cristão”, Dialogus inter Philosophum, Judaeum et Christianum. Abelardo faz dialogar as culturas reunindo três pessoas (um filósofo, um judeu e um cristão), mais ele que é o juiz. Este é o motivo central do livro. Cultura e religião eram elementos profundamente interligados. Assim o Diálogo adquire também um sentido de dialogo inter-cultural e inter-religioso.

Sobre o transfundo histórico da obra podemos dizer que foi escrita por volta do ano 1141, imediatamente após o Sínodo de Sens (1140). Neste Sínodo foram condenadas várias teses de Abelardo. Foi condenado a permanecer enclaustrado num Monastério, proibido de escrever. Porém seu amigo Pedro O venerável, abade de Cluny, o acolheu e o motivou a seguir escrevendo, conseguindo a suspensão da sentença. Porém a morte de Abelardo estava perto. Assim o Diálogo foi a última obra de Abelardo e foi escrita um pouco antes de sua morte acontecida em 1142. A obra ficou inacabada. O Diálogo começa com um prefácio, no qual Abelardo começa explicando o “enredo” da obra. Ela é uma obra de “ficção”. É um sonho que teve o autor. Assim o relata Abelardo no primeiro parágrafo do prefacio:

Estava eu olhando desde o profundo de um sonho quando, eis que três homens que avançavam por diferentes caminhos se apresentaram ante mim. Ainda em sonhos, perguntei-lhes imediatamente a que credo pertenciam e por que tinham ido a mim.


Abelardo cria uma ficção literária. Num sonho ele vê três homens que se aproxima a ele. Quem são estes homens? Vejamos a continuação do relato:

Disseram: somos homens pertencentes a diferentes credos religiosos e ainda que todos nos declaramos por igual adoradores de um Deus único que lhe servimos, não obstante, com uma fé e umas formas de vidas diferentes. Efetivamente uno de nós é um gentil desses que chamam filósofos e que se conformam com a lei natural. Os outros dois possuem escrituras, sendo judeu o um e cristão o outro.


O que estes homens querem? Querem que Abelardo seja o juiz para as controvérsias e discussões que eles têm. Vejamos:

Tendo mantido entre nós longas discussões e controvérsias a respeito de nossos diferentes credos religiosos, acordamos, finalmente submeter-nos a teu juízo.


Abelardo pergunta a eles de quem tinha sido a idéia e quem os conduziu até ele e especificamente por que o tinham escolhido. O filósofo responde:

Foi por iniciativa minha pelo que este assunto tomou seu curso pois é tarefa própria dos filósofos a de procurar a verdade mediante o raciocínio e seguir em todas as questões não a opinião dos homens, senão a guia da razão. Por isso, depois de assistir por certo tempo e com afã a nossas escolas e tendo-me instruído não só em seus métodos racionais senão também em suas autoridades; dirigi-me finalmente à filosofia moral, que é o objetivo final das restantes disciplinas e com respeito à qual estas não são senão saborosas primícias.


Podemos inferir que é Abelardo quem fala por boca do “filosofo” personagem de seu diálogo e podemo-nos perguntar quem é este filosofo, isto é, que características ele tem. Na introdução à tradução para o espanhol do Diálogo há uma citação de R. Thomas [Abelardo, p. 69], na qual ele se expressa ele diz que “o filosofo que dialoga não é um pagão típico, mas é um pagão atualizado: um pensador da área muçulmana educado na cultura árabe porém emancipado do Islã mediante o exercício autônomo da reflexão filosófica”. Sabemos que é árabe islamita porque no transcurso do diálogo o judeu se refere a ele como sendo de uma comunidade, que não sendo judia, segue as praticas da circuncisão por sua origem abrahámico ismaelita. O judeu acrescenta que na comunidade do filosofo se circuncida aos meninos aos doze anos. Este é mais um argumento para localizar o filósofo dentro do mundo do Islã.

No diálogo o filósofo acrescenta após ter aprendido na Filosofia Moral “tudo quanto pude a respeito do bem e do mal supremo e a respeito das coisas que fazem a um homem feliz ou azarado examinei de imediato atenciosamente os credos das diferentes religiões em torno meu, nas quais está agora o mundo dividido.” [Abelardo, p. 84]. O filósofo afirma que está a procura do credo que esteja em maior harmonia com a razão, para poder segui-lo, pois já tinha estudado todos e comparados todos entre si.

Logo o filosofo, nas palavras do próprio Abelardo, derrama o azeite da adulação sobre sua cabeça. O filósofo fala para Abelardo, sobre as razões pelas que o tinham escolhido como juiz da controvérsia:

Sendo notório que sobressais em grau sumo pela agudeza de teu intelecto e por teus vastos conhecimentos em ambas as escrituras; nessa mesma medida serás, evidentemente, capaz de resolver neste juízo apoiando ou defendendo, dando razão de nossas respectivas discrepâncias. Consta, efetivamente, qual subtil é teu talento e qual abundante o tesouro de tua memória em sentenças filosóficas e divinas, superando os estudos habituais em vossas escolas. Consta assim mesmo que brilhaste em ambas as doutrinas mais do que teus próprios maestros e inclusive acima de quem escreveram acrescentando os diferentes saberes. Uma prova evidente disso nos a outorga essa obra admirável de teologia, à que a inveja não pôde suportar nem também não conseguiu destruir, senão que mais bem engrandeceu ao perseguí-la. [Abelardo p. 85]


Abelardo coloca nas palavras do filósofo um auto-elogio da sua obra. Mas, como muitos estudos assinalam, o mais provável que Abelardo somente esteja defendendo a ortodoxia de seus escritos, alguns deles atacados e condenados no sínodo de Sens.

Porém Abelardo responde aos elogios do filosofo, com humildade:

Eu não solicito a graça dessa honra que me reservastes, pois, em ausência de homens doutos, tomastes por juiz a um néscio. Ao igual que vocês estou, efetivamente, acostumado a vãs disputas deste mundo e não é meu propósito escutar com a severidade do juiz em coisas que eu costumava tratar por puro deleite. No entanto, tu, filósofo, que não professas lei alguma e unicamente te submetes à razão não sobrevalorizes a superioridade que parece assistir-te nesta contenda. (…) Pois, como lembra um dos vossos, não há doutrina, por falsa que seja, que não leve misturadas algumas verdades. E creio que por muito frívola que seja uma disputa conterá algum argumento instrutivo. [Abelardo p. 85]


O prefacio conclui afirmando que os três (o filósofo, o judeu e o cristão) assentiram e se congratularam por Abelardo ter consentido ser o juiz entre eles.

Sobre o contexto histórico filosófico-cultural em que foi escrito o Diálogo podemos dizer o seguinte. Na época de Abelardo existe na Europa uma corrente que poderíamos chamar de “pensamento autônomo”. Sobre esta corrente de pensamento na Introdução a tradução para o espanhol, novamente encontramos informação importante:

Na Espanha muçulmana existia uma corrente filosófica que mantinha distâncias com respeito ao Corão e via as religiões como doutrinas filosófico-morais das que um pensamento filosófico sólido e autônomo podia prescindir. Expoente valioso desse ponto de vista, próximo do deísmo dos ilustrados do século XVIII, era o filósofo zaragozano Ibn Bayya (Avempace), contemporâneo de Abelardo e autor do Regime do solitário. Os solitários são homens perfeitos, cujas inteligências confluem na verdade universal do «intelecto agente» aristotélico substantivado e convertido numa espécie de precedente do «Espírito» hegeliano. A tendência para a autonomia do pensamento se acentua em Ibn Tyfail, de Guadix, que tinha 40 anos quando Abelardo escreveu seu Diálogo. É provável que aquele tivesse escrito já para essas datas sua Hayy ibn Yaqzam, traduzida posteriormente ao latim com o título de Philosophus Autodidacíus. A Filosofia se mostra ali como superior à Religião porque é capaz de dar conta racional desta. [Abelardo p. 70]


Para os autores da Introdução da edição espanhola do Diálogo o pensamento autônomo teria culminado com o pensamento do filosofo cordovés Averróis (1126-1198), grande comentador de Aristóteles e incansável defensor da filosofia. Uma das obras mais significativas de Averróis foi a Destruição da Destruição. Que foi escrita contra a obra de Al Gazali A Destruição dos Filósofos. É contra esta obra que Averróis defende o pensamento autônomo.

Para o professor Cesar Raña Dafonte, da Universidade de Santiago de Compostela, o Diálogo nos coloca frente a uma nova concepção medieval da razão, diferente daquela da primeira Idade Média. Agora a razão é guia, é uma faculdade para chegar à verdade. Por este motivo, de acordo com o professor Raña, o filósofo se mostra confiante nos métodos racionais. Mas no Diálogo a razão não é tudo, há temas que a transcendem. Assim, a fe não é ociosa, mas outro médio, ou fonte informativa, para aquilo que supera a pura razão. [Raña, sn]

Sobre o conteúdo mais geral da obra podemos afirmar que nela Abelardo trata do problema da dialética fé e razão, chave da filosofia medieval, mediante o diálogo intercultural. Os principais temas tratados são: a razão, o bem supremo, a autoridade, a circuncisão, a intenção, a lei, a dialética e as virtudes. Basicamente a obra pode ser dividida em duas: primeiramente o diálogo entre o filósofo e o judeu e em segundo lugar o diálogo entre o filósofo e o cristão.

Como bem e assinalado na primeira nota de rodapé da edição espanhola do Diálogo, a atitude e as palavras do filósofo mostram com clareza a atitude e o pensamento que o próprio Abelardo tinha no referente às relações entre Fe e razão. Estas podem ser agrupadas em quatro itens. [Abelardo p. 84]

1) Não se pode assumir um credo religioso sem um prévio discernimento racional.

2) A razão é capaz de julgar sobre a superioridade de um credo respeito a outro segundo harmonize mais ou menos com a evidencia racional.

3) A razão acaba reconhecendo seu limite e a superioridade da revelação cristã para fundamentar amoral e dar sentido a existência.

4) O conteúdo da fé não pode ser entendo como um sistema de evidencias racional, porém somente pode ser aceito enquanto não seja contraditório com a razão e em mira a superioridade a se refere.


Estes quatro pontos servem bem como conclusão. Espero ter mostrado, embora brevemente, de que o tema do diálogo entre culturas foi um tema tratado numa obra medieval. Este tema não era somente uma preocupação dos filósofos cristão, mas também de árabes e judeus.

Na época em que Abelardo escreveu o Diálogo muitos filósofo aspiravam ao “pensamento autônomo”. O Diálogo deve ser entendido sob esse transfundo histórico cultural.

O Diálogo adquire muita maior importância se se considera que era uma época de cruzadas e a persecução dos judeus. Por isso para Abelardo era importante o diálogo, especialmente num época em que religião e cultura se uniam de uma maneira quase que indissociável. E as guerras político religiosas eram freqüentes. Para finalizar somente quero acrescentar que espero numa próxima oportunidade poder analisar um pouco melhor o conteúdo do livro, pois agora só nos centramos principalmente no prefacio.

Este obra escrita por Abelardo no fim de sua vida foi uma espécie de grande encerramento de sua vida e de sua labor como filósofo e reafirma o lugar de Abelardo entre os grande pensadores medievais, e se consideramos seus aportes no âmbito da ética, da lógica e, neste caso, da cultura, sua importância atravessa os séculos e fazem dele um homem capaz de dialogar com o século XI.


BIBLIOGRAFIA

ABELARDO, Pedro. Diálogo entre un filósofo, un judio y un Cristiano. Traducción y orientación didáctica de Anselmo Sanjuan y Miquel Pujadas. Zaragoza: Yalde, 1990.

RAÑA DAFONTE, César. El diálogo entre culturas: el caso medieval. (Texto recebido pessoalmente do professor Raña na Universidade de Santiago de Compostela. Texto impresso de computador, sem indicações de edição)




__________________

NOTAS


1 Este artigo foi a minha participação na mesa sobre o "Ensino de Filosofia" no I Congresso Nacional das Licenciaturas, na Universidadade Mackenzie em setembro de 2007. E será publicado origina com o título “Pedro Abelardo e o diálogo entre culturas: um desfio filosófico medieval”, na obra: Coleção Licenciaturas em Debate: Ciência, Ensino e Aprendizagem. Editora Plêiade, São Paulo, 2009, que será lançado no II Congresso Nacional das Licenciaturas em outubro de 2009.

2 Esta obra foi publicada em português sob o titulo de “Lógica para Principiantes. Coleção os pensadores VII, Anselmo e Abelardo. São Paulo: Abril, 1973.



O Dialogo entre um filosofo, um judeu e um cristão
Dialogus inter Philosophum, Judaeum et Christianum
Diálogo entre un filósofo, un judio y un Cristiano





« voltar

Colaboladores|Links|Sobre|home