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DA AULA IDEAL
Se os alunos não fossem um problema


Cesar Catalani.

Era noite. Eu estava agitado e não conseguia dormir. Foi então que, após tomar alguns calmantes, tive um sonho muito estranho. Era professor, tinha uns vinte anos a mais do que atualmente e descrevia, numa espécie de palestra com quase duzentos ouvintes, uma aula que presenciara e que fora extremamente interessante. Segue-se a minha fala.

“Certa vez eu, professor de Filosofia do Ensino Médio, presenciei uma aula muito incomum. Tendo em vista minha formação acadêmica (participei de vários cursos nos mais variados continentes), meu desejo de ministrar aulas no que antigamente denominava-se colegial, e conseqüentemente lidar com um público muito menos interessado em filosofia do que os alunos universitários desse curso, é uma incógnita para mim mesmo.

“Era o primeiro dia de aula, a turma compreendendo o terceiro e último ano do Ensino Médio. Isso significava que todos os alunos já se conheciam, pois cursaram o primeiro e o segundo anos anteriores juntos, de forma que na sala cheirava-se, via-se, ouvia-se, em suma, percebia-se um ambiente agitado, de conversa e, por que não, de indisciplina. Apenas para citar alguns exemplos, uma aluna contava para outra, de um modo rápido e quase incompreensível para um professor de meia idade, os acontecimentos de suas férias:

- Fui à Praia Grande e lá encontrei o Fabinho e aí fiquei com ele tipo assim uns seis, sete ou oito dias. Minha mãe acabou descobrindo e aí ficou tudo na mer... Lembro-me de um grupo de meninos que atormentava o mesmo garoto dos anos anteriores, porque, além de ser gordo (motivo pelo qual já sofria chacotas), começara a usar um par de óculos. Os apelidos de coitado iam dos mais tradicionais, como quatro olhos e Jô Soares, até outros, rudes, indignos e cruéis, insensíveis a toda condição de humanidade presente em cada um de nós, e que, por isso, não me atrevo a citar. Havia também um casal que, pelo que se notava, não compartilharam da companhia um do outro nas férias, pois se beijavam tanto que fiquei até constrangido em pedir que separassem suas bocas e mãos e pernas... Resumindo, não havia nenhum, dentre os alunos, que se comportava conforme a definição tradicional de disciplina.

“Pois bem. Tento iniciar a minha aula de cinqüenta minutos sobre a metafísica cartesiana neste ambiente e percebo que meu ‘ser de carne e osso’, como nos diria Unamuno, não foi notado ou, se o foi, estava sendo considerado um estorvo. Até que um dos aluos, não me recordo se rapaz ou garota, pediu abruptamente silêncio, olhou no fundo de meus olhos e disse:

- Cala a boca, seu filho da pu...

“Doce oportunidade para desistir e sair da sala, vocês diriam. Entretanto, naquele momento, praticamente sem pensar, explorei meu repertório filosófico e, à la Sócrates, intervi:

- Defina “filho da pu...”

“A sala paralisou e eu pensei: santo Sócrates. E aí aconteceu algo incrível, a saber, a sala tentou responder! A cada resposta, eu mostrava-lhes, ou ao menos tentava mostrar, que suas definições eram imprecisas, e, caso quisessem me xingar, o mínimo é que o fizessem com propriedade, entendendo o significado daquilo que estavam falando. E a discussão foi desenvolvendo-se sobre outros palavrões e, rapidamente, os alunos entraram em debates éticos que eu nunca antes havia sequer imaginado. Essa discussão prolongou-se até uns quinze minutos de aula.

“Num determinado momento, senti uma estranha necessidade de intervir novamente (afinal de contas, o verdadeiro papel do professor e da professora não deveria ser intervir de modo a fazer os alunos pensarem, em detrimento de transmitir conteúdos fechados e não permitir que esses alunos criem?), citando ‘frases-pilares’ ou idéias centrais do pensamento e seus respectivos autores. Extrapolei o campo da ética ao citar Descartes – penso, logo existo -, a idéia de Hobbes de que o homem é o lobo do homem e Hegel (o racional é real e o real, racional). Os alunos entenderam, como que por intuição divina, aonde eu gostaria de chegar, apropriando-se dessas idéias e de muitas outras que eu nem conhecia, o que ocasionou discussões calorosas sobre os mais diversificados temas, das mais variadas áreas do conhecimento. Então propus que escrevessem suas idéias nos cadernos.

“Eis o fenômeno mais espetacular: ali, na minha frente, perante meus olhos, vi nascerem escritos brilhantes de metafísica, ética, biologia, sociologia, comunicação, matemática, etc, etc, etc. Eles foram produzindo pensamentos com uma qualidade cada vez maior, pois o exercício da escrita permite ao escritor rever os seus próprios conceitos.

“Nos dez últimos minutos de aula, criou-se na sala um embate intelectual digno de ‘Roda Viva’, onde alguns, tão apegados que estavam nas suas teorias, agrediam ironicamente os outros. (Ironicamente, sim, pois já transpuseram o limite da violência física ou de um mero xingamento.)

“Por fim, revoltaram-se contra mim, dizendo que meus conceitos filosóficos eram ridículos, assim como meu método de ensinar. Bate o sinal. Vão embora. E eu tenho o tema da próxima aula ideal: a arrogância de determinados pensadores e sua dificuldade em ouvir os outros.”

Acordei. Tive de me perguntar se havia realmente acordado ou se ainda continuava dormindo. Afinal de contas, o que é a realidade? Será que, recordando o que aquele antigo sábio dissera, agora sou um professor que sonha ser um rapaz de vinte anos ou, ao contrário, um rapaz de vinte anos que sonhou ser professor? Tudo é tão confuso... Além disso, se eu realmente tenho vinte anos, por que sonhei o que sonhei? Medo de me ver como filósofo e de encarar uma sala de aula que não está interessada em filosofia? E se, sendo agora um professor de meia idade que está sonhando, por que faço esse trabalho, já que tudo não passa de ilusão? Ouço uma voz: vem tomar café! Alguém me chama.


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