Especial
A revolta do homem absurdo
Albert Camus foi um homem de muitas faces: foi jornalista, romancista, dedicou-se ao teatro, foi militante político e polemista. Os sentimentos que lhe impulsionaram sua obra, agiam frente a um mundo que lhe era estranho, absurdo, mas também fraternal e cheio de sol

POR JORGE LUIS GUTIÉRREZ


ART RENEWAL INTERNATIONAL E SHUTERSTOCK
Representação do Mito de Sísifo, tema da obra homônima mais filosófica de Camus, pelo italiano Tiziano Vecellio, de 1549
"Camus era uma aventura singular de nossa cultura, um movimento cujas fases e cujo termo final tratávamos de compreender. Representava neste século e contra a história, o herdeiro atual dessa longa fila de moralistas cujas obras constituem talvez o que há de mais original nas letras francesas." Estas palavras de Jean-Paul Sartre sobre seu amigo Albert Camus, são quiçá as que melhor o descrevem. Pois Camus, nascido na Argélia, em 1913, é um dos pensadores mais profundos e originais da língua francesa. Um indício disto é que lhe foi outorgado o Prêmio Novel de Literatura, em 1957. O pensamento de Camus envolve alguns dos grandes temas da Filosofia: o absurdo, o sentido da existência, a revolta e o amor pela vida. "Eu amo a vida, eis a minha verdadeira fraqueza. Amo-a tanto que não tenho nenhuma imaginação para o que não for vida", estas palavras colocadas por Camus na boca de Jean-Baptiste Clamence, personagem central do livro A Queda, são uma boa síntese de sua filosofia.

Albert Camus foi um homem de muitas faces: foi jornalista, romancista, dedicou- se ao teatro, militante político e polemista. Famosas são suas polêmicas com Roland Barthes sobre o livro A Peste, e com Jean-Paul Sartre sobre o livro O Homem Revoltado. Em Camus, sua vida e sua obra entrelaçam-se de uma maneira fecunda e criativa. São seus sentimentos que impulsionam sua obra, seu sentir frente a um mundo que lhe era estranho, absurdo, mas também fraternal e cheio de sol. Para Camus, um grande escritor sempre traz consigo seu mundo e sua prédica. E o mundo de Camus é um mundo do absurdo, num primeiro momento, e da revolta num segundo. Da fraternidade e da solidariedade. Dos mal-entendidos e da miséria. Do sol e dos desertos, especialmente no livro O estrangeiro, onde o personagem Meursault mata "por causa do sol" frente ao mar e ao deserto. Porém, não são somente as personagens que se sentem como estrangeiros, Camus sentese também estrangeiro neste mundo, por isso o titulo do livro. Sente-se exilado, atuando sempre num cenário para o qual não estava preparado e não consegue entender. Suas expectativas são sempre diferentes das que a vida oferece. Então, nasce o sentimento de exílio. Ele afirma: "não existe pátria para quem desespera e, quanto a mim, sei que o mar me precede e me segue, e minha loucura está sempre pronta. Aqueles que se amam e são separados podem viver sua dor, mas isso não é desespero: eles sabem que o amor existe. Eis porque sofro, de olhos secos, este exílio. Espero ainda. Um dia chega, enfim."

O estrangeiro, que se passa na Argélia, foi publicado em 1942 e é, possivelmente, o romance mais conhecido de Camus

REPRODUÇÃO
Para o franco-argelino Albert Camus, o homem absurdo é aquele que, sem o negar, nada faz pelo eterno

Ele não é um filósofo preocupado com definições nem com um rigor conceitual. Para ele, a Filosofia sempre é vida e os parâmetros do filosofar são sempre subjetivos e ancorados na sua vida. Sua filosofia é um pensar sobre a existência, porém não desde seus aspectos teóricos ou conceituais, mas práticos e existenciais. Assim, constantemente, está referindo-se a ele mesmo. E novamente serão as personagens do livro A queda que falam: "Nunca me lembrei senão de mim mesmo. Nunca me preocupei com os grandes problemas, eu vivia intensamente e num livre abandono à felicidade." A subjetividade vai até o próprio conceito de verdade, quando Camus afirma "chamo verdade a tudo o que continua." Assim, Camus é um filósofo preocupado com os simples, cotidianos e profundos problemas da existência. Especialmente com a felicidade. E quando se refere a ela, novamente suas personagens expressam-se. Vejamos um exemplo: "então, planando em pensamento por cima de todo este continente que me é subordinado sem saber, bebendo a luz de absinto que se eleva, ébrio, enfim, de palavras más, sou feliz, sou feliz, estou lhe dizendo, proíbo-o de não acreditar que sou feliz, que morro de felicidade! Ah, sol, praias, e as ilhas sob o os alísios, juventude cuja lembrança desespera!" Sempre sobre uma terra onde tudo é "Tarde demais, longe demais".

A obra de Camus é extensa e variada. Analisaremos alguns aspectos dela. Em Camus, a Filosofia e literatura misturam- se criativamente. A Filosofia vai sendo elaborada mediante os diálogos das personagens, do enredo das obras, nos romances, nas peças de teatro. É a ficção que caminha com a Filosofia através da obra de Camus. E é através das personagens que vai delineando-se sua filosofia e seu sentimento frente ao mundo. Vejamos o caso de Janine. Ela é a única mulher protagonista das obras do francês, personagem central do conto A mulher adultera. Ela enfrenta um problema complexo: seu exílio é seu próprio corpo. Por isso, embora Janine estivesse lá, nada se assemelhava ao que havia imaginado. Vemos novamente o problema das expectativas, das esperanças, do que imaginamos e o que de fatos são as coisas. Por isso para Janine nada se passava como previra, nem nada se assemelhava ao que havia esperado. E, novamente, o sentimento que se está vivendo num mundo estranho, num cenário diferente do que devia ser. Por isso Janine não sabia onde colocar a bolsa, onde se colocar a si própria. Ela sentia apenas a sua solidão, o frio que a penetrava e um peso maior no lugar do coração. Camus coloca nessa mulher os matizes de sua filosofia, e novamente aparecem as palavras "falta" e "espera". Vejamos o texto: "Lá embaixo, mais para o sul, no lugar em que o céu e a terra se uniam numa linha pura, lá embaixo parecia-lhe que, de repente, alguma coisa até aquele dia desconhecia e que, no entanto, sempre lhe fi- zera falta, estava à sua espera.". E ainda: "Janine não conseguia se arrancar à contemplação desses fogos à deriva. Girava com eles, e o mesmo caminhar imóvel unia-a, pouco a pouco, ao seu ser mais profundo, onde o frio e o desejo agora se combatiam. Diante dela, as estrelas caíam uma a uma, depois extinguiam-se entre as pedras do deserto; a cada vez, Janine abria-se um pouco mais para a noite. Respirava, esquecia o frio, o peso dos seres, a vida demente ou imobilizada, a longa angústia de viver e morrer. Depois de tantos anos durante os quais, fugindo do medo, correra loucamente sem objetivo, finalmente ela se detinha. Parecia que encontrara suas raízes, a seiva tornava a subir em seu corpo, que já não temia". Tudo isso tornava Janine uma mulher adúltera: ela se abria para a noite e deixava a seiva e o frio subir por seu corpo. Ela era adúltera porque respirava esquecida do frio que a penetrava e do peso dos seres. Era adúltera porque traía sua vida demente e imobilizada e a longa angústia de viver e morrer e entregava- se a uma outra vida, a outros sentimentos, e parecia-lhe que encontrara finalmente algo que sempre esteve á sua espera e que ela até aquele dia desconhecia, porém sempre lhe fizera falta.

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FICHA TÉCNICA:
Diário de Viagem
Por: Albert Camus
Editora: Record - 154 páginas

Em 1950, a editora Gallimard publicou a obra Noces e, em 1954, L´éte. Estas obras hoje formam um só livro e foram publicadas com o titulo Noces suivi de L´été (em português, Núpcias, o verão, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1979). Esta é uma obra da juventude de Camus. Nela ainda não aparecem os temas que surgirão em livros posteriores, como o absurdo e a revolta. Nesta etapa Camus aceita a vida, e a vive, sem entrar na problemática filosófica dela. Há uma espécie de união com a natureza e, especialmente, com o sol e o mar, um certo otimismo que nasce dessa união. Vejamos um texto de exemplo: "Caminhamos ao encontro do amor e do desejo. Não buscamos lições, nem a amarga filosofia que se exige da grandeza. Além do sol, dos beijos e dos perfumes selvagens, tudo o mais nos parece fútil. Quanto a mim, não procuro estar sozinho nesse lugar. Muitas vezes estive aqui com aqueles que amava, e discernia em seus traços o claro sorriso que neles tomava a face do amor. Deixo a outros a ordem e a medida. Domina-me por completo a grande libertinagem da natureza e do mar." Nesses cenários de grandeza natural e liberdade humana, Camus afirma que não há vergonha alguma em ser feliz. Tudo está junto, a glória, a alegria, os encontros, a brisa fresca e o orgulho da condição de homem. Escutemos novamente ao próprio Camus: "Aqui, compreendo o que se denomina glória: o direito de amar sem medida. Existe apenas um único amor neste mundo. Estreitar um corpo de mulher e também reter de encontro a si essa alegria estranha que desce do céu para o mar. Daqui a pouco, quando me atirar no meio dos absintos, a fim de que seu perfume penetre meu corpo, terei consciência, contra todos os preconceitos, de estar realizando uma verdade que é a do sol e que será também a de minha morte. Em certo sentido, é justamente a minha vida que estou representando aqui, uma vida com sabor de pedra quente, repleta de suspiros do mar e de cigarras, que agora começam a cantar. A brisa é fresca e o céu, azul. Gosto imensamente desta vida e desejo falar sobre ela com liberdade: dá-me o orgulho de minha condição de homem."

É então que Camus compreende que há um tempo para viver e um tempo para testemunhar a vida. Essa vida que se expande sobre o mar, no silêncio enorme do meio-dia. Então Camus diz: "Todo ser belo tem o orgulho natural de sua beleza, e o mundo, hoje, deixa seu orgulho destilar por todos os poros. Diante dele, por que haveria de negar a alegria de viver, se conheço a maneira de não encerrar tudo nessa mesma alegria de viver?" E nessa terra os deuses resplandecentes retornam cada dia à sua morte cotidiana. E onde outros deuses virão, nascendo do coração da terra para serem mais sombrias, suas faces devastadas.

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Cartaz do filme O estrangeiro, criado a partir da obra homônima de Camus, estrelado pelo italiano Marcello Mastroianni

O estrangeiro foi publicado em 1942 e é, possivelmente, o romance mais conhecido de Camus. Começa com a conhecida frase "Hoje, morreu mamãe, Ou talvez, ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo: sua mãe faleceu. Enterro amanhã. Sentidos pêsames. Isto não esclarece nada. Talvez tenha sido ontem". Nesta obra ele nos apresenta um mundo incoerente. A personagem principal é Meursault e será ele que terá que viver a dimensão absurda da vida humana, dimensão sempre presente, que acompanha ao homem por toda sua existência. Aprofunda nesta obra sua visão do absurdo de um modo literário, e narra a experiência absurda de Meursault, através das muitas situações - absurdas - que ele viverá. O tédio, a repetição de situações, as pequenas coisas, as situações sem sentido, os pensamentos, são os elementos do cotidiano absurdo. A vida é um eterno sem sentido. Só fica uma espécie de saudade da felicidade, sendo que o mais freqüente é a indiferença frente ao mundo. Mas nele também estão a natureza, as ruas, os cenários em que vivemos a experiência do absurdo. "As luzes da rua acenderam-se bruscamente e fizeram empalidecer as primeiras estrelas que subiam na noite. Senti os olhos se cansarem, de tanto olhar as calçadas, com sua carga de homens e de luzes."

Mas a vida de Meursault, sem sentido, rotineira e medíocre, vê-se bruscamente mudada quando ele assassina um árabe. Ele é levado para a cadeia e será lá que se desenvolverá a segunda parte do livro. Agora ele terá tempo para pensar. É então que o absurdo fazse mais evidente. Meursault é condenado à morte. Agora ele sabe que vai morrer. O absurdo da vida torna-se ainda mais evidente. E também o tédio, que só poderá ser superado pelas lembranças da vida anterior: "todo o problema, ainda uma vez, estava em matar o tempo. Acabei por não me entediar mais, a partir do instante em que aprendi a recordar." Assim, as lembranças têm uma força quase que redentora: "compreendi, então, que um homem que houvesse vivido um único dia, poderia, sem dificuldade, passar cem anos numa prisão. Teria recordações suficientes para não se entediar."

A MORTE FELIZ

"[...] A manhã que despontou estava cheia de pássaros e de ar fresco. O sol subiu rapidamente e de um salto ficou acima do horizonte. A terra cobriu-se de ouro e de calor. Na manhã, o céu e o mar se salpicavam de luzes azuis e amarelas, com grandes manchas que saltavam. Um vento leve erguera-se, e pelas janelas um ar com gosto de sal vinha refrescar as mãos de Mersault. Ao meio-dia o vento cessou, o dia explodiu como um fruto maduro e sobre toda a extensão do mundo escorreu como um suco morno e sufocante, ao som de um repentino concerto de cigarras. O mar cobriu-se deste suco dourado como um óleo e devolveu à terra esmagada pelo sol um sopro quente, que a impregnou, exalando cheiros de absinto, de alecrim e de pedra quente. Da cama, Mersault captou esse choque e essa oferenda e abriu os olhos sobre o mar imenso e curvo, reluzente, povoado de sorrisos de seus deuses. Deu-se conta, de repente, de que estava sentado na cama e que o rosto de Lucienne estava bem perto do seu. Lentamente subia dentro dele, como que desde o ventre, uma pedra que se encaminhava para a garganta. Respirava cada vez mais rápido, aproveitando as passagens. A coisa continuava a subir. Olhou para Lucienne. Sorriu sem uma crispação, e também esse sorriso vinha do interior. Recostou-se na cama, sentindo a lenta subida que havia em si. Olhou para os lábios inchados de Lucienne e, por trás dele, o sorriso da terra. Ele os via com o mesmo olhar e com o mesmo desejo. "Daqui a um minuto, daqui a um segundo", pensou. A subida terminara. E, pedra entre as pedras, ele retornou, na alegria de seu coração, à verdade dos mundos imóveis."

Trecho do livro A morte feliz, de Albert Camus, da Editora Record. Este romance não foi publicado em vida. Escrito entre 1936 e 1938, pode ser considerado uma espécie de preâmbulo de O estrangeiro

Um dos problemas que será apresentado ao personagem pelo capelão da prisão é o de Deus, que pode ser resumido na esperança numa outra vida. Ante a pergunta do capelão se ele não gostaria de ter uma outra vida, Meursault responde que nunca se muda de vida, pois todas se equivalem e que a sua não lhe desagradava em absoluto. E quando o capelão lhe pergunta, "não tem, então, nenhuma esperança e consegue viver com o pensamento de que vai morrer todo por inteiro?", Meursault simplesmente responde sim. O capelão insiste: "não, não consigo acreditar. Tenho certeza de que já lhe ocorreu desejar uma outra vida". Meursault responde que sim, mas que isso era tão importante quanto desejar ser rico, nadar muito de pressa ou ter uma boca mais bem feita. Tudo isso era para Meursault da mesma ordem. Quando o capelão quis saber como ele imaginava essa outra vida, Meursault lhe responde gritando: "uma vida na qual me pudesse lembrar desta vida". Após a saída do capelão, a vida continua na cela, Meursault narra: "Reencontrei a calma, depois que ele partiu. Estava esgotado. Atirei-me sobre o leito. Acho que dormi, pois acordei com estrelas sobre o rosto. Subia até mim os ruídos do campo. Aromas de noite de terra e de sol refrescavam-me as têmporas. A paz maravilhosa deste verão adormecido entrava em mim como uma maré. Neste momento, e no limite da noite, soaram sirenes. Anunciavam partidas para um mundo que me era para sempre indiferente." Meursault também não se arrepende, pois, segundo as suas palavras, nunca conseguira se arrepender verdadeiramente de nada.

Assim, prisioneiro, entediado e sabendo que vai morrer, Meursault dedica-se a lembrar. E as lembranças também adquirem as tonalidades do absurdo. "Assaltaram- me as lembranças de uma vida que já não me pertencia, mas onde encontrara as mais pobres e as mais tenazes das minhas alegrias: cheiros de verão, o bairro que eu amava, um certo céu de entardecer, o riso e os vestidos de Marie." Porém, nessa situação há algumas certezas. A primeira é que nunca se é completamente feliz e a segunda que a vida não vale a pena ser vivida. A esperança também deixa de ter sentido, considerando que está condenado à morte.

Nesse enredo, Marie Cardona, uma antiga datilógrafa do escritório, sua namorada, é uma das lembranças mais freqüentes. Ele tomava banhos de mar com ela ("Eu estava ainda na água, quando ela já se deitara na bóia, de bruços. Virou-se para mim. Os cabelos caíam-lhe nos olhos e sorria. Quando o sol ficou forte demais, ela mergulhou e eu a segui. Alcancei-a, passei o braço em volta da sua cintura e nadamos juntos. Ela continuava a rir."), iam ao cinema ("O filme tinha momentos engraçados e outros realmente idiotas. A sua perna estava encostada na minha. Acariciava-lhe os seios."), ficavam nus na cama ("Desejeia intensamente, porque usava um belo vestido de listras vermelhas e brancas e sandálias de couro. Adivinhavam-se seus seios firmes e o queimado do sol lhe dava um aspecto de flor").

REPRODUÇÃO
O homem revoltado foi publicado em 1951, uma obra escrita contra os crimes de Estado, especialmente os do Stalinismo da União Soviética. Na imagem em Gulag, fator que causa a briga intelectual entre Camus e Sartre, tornada pública nas páginas da revista Les Temps Modernes

ART RENEWAL INTERNATIONAL

O Mito de Sísifo publicado em 1942, é a obra mais filosófica de Camus. O livro começa colocando o único problema fundamental e, verdadeiramente, sério: o suicídio, isto é, julgar se a vida merece ou não ser vivida. Para o filósofo, todos os outros problemas vêm depois, como, por exemplo, se o mundo tem três dimensões, se o espírito tem nove ou doze categorias. Primeiro é preciso responder àquela pergunta. E acrescenta, com uma dose de ironia: "nunca vi ninguém morrer por causa do argumento ontológico.

Galileu, que sustentava uma verdade científica importante, abjurou dela com a maior tranqüilidade assim que viu sua vida em perigo."

Uma das cenas do romance onde fica mais claro o que é o sentimento de absurdo frente à vida é quando Marie pergunta a Meursault se quer casar com ela. Ele responde que tanto fazia, mas que, se ela queria, poderiam se casar. Marie quer saber então se ela a ama. Meursault responde que não a amava, porém que isso não queria dizer nada. Marie então pergunta que nesse caso, por que casarse com ela. Meursault responde que isso não tinha importância alguma e que, se ela o desejava, poderiam-se casar, e que era ela quem o estava pedindo, e ele se contentava em dizer que sim. Maria argumenta que o casamento é uma coisa séria. Meursault responde que não. Maria fica em silêncio olhando para ele, para logo perguntar se o pedido tivesse sido feito por outra mulher, com a qual tivesse o mesmo relacionamento, ele teria respondido do mesmo modo. Meursault responde que sim. Frente a isso Marie pergunta a si própria se ama a Meursault. Logo, após outro instante de silêncio, Marie fala para Meursault que ele é uma pessoa estranha e que o amava certamente por isso mesmo, mas que talvez, um dia, pelos mesmos motivos, ele a decepcionaria. Como Meursault ficou calado, Marie o tomou do braço sorrindo, e lhe diz que queria casar com ele. Meursault respondeu que sim, desde que ela quisesse.

Mas, voltemos à prisão e Meursault condenado à morte. Na sua cela ele continua narrando o que lhe está acontecendo: "Do fundo do meu futuro, durante toda esta vida absurda que eu levara, subira até mim, através dos anos que ainda não tinham chegado, um sopro obscuro, e esse sopro igualava, à sua passagem, tudo o que me haviam proposto nos anos, não mais reais, que eu vivia."

Assim, a vida na prisão revela o tédio e o absurdo, a falta de sentido e a inutilidade da própria vida. Esse sentimento é mais forte quando ele tem que enfrentar o tribunal que o julgava. Enquanto o advogado argumentava em defesa de Meursault, ele ouvia lá fora a buzina do vendedor de sorvete. Mas é então que as lembranças chegam. Então tudo se torna confuso e estranho, absurdo, inútil. Frente a isso, Meursault só quer voltar para a sua cela e dormir. E finaliza dizendo: "Mal ouvi o advogado clamar, para concluir, que os jurados não gostariam certamente de condenar à morte um trabalhador honesto, perdido por um minuto de desvario; e pedir as circunstâncias atenuantes para um crime cujo remorso eterno, o mais seguro dos castigos, eu já arrastava comigo".

O livro termina evocando a fraternidade do mundo, a natureza e a vida. São as últimas palavras de um condenado à morte e nelas parece estar condensado todo seu sentimento frente à vida e a saudade de uma vida que logo acabaria definitivamente e ante a qual só podia sentir indiferença. Escutemos sua última fala: "Também eu me sinto pronto a reviver tudo. Como se esta grande cólera me tivesse purificado do mal, esvaziado de esperança, diante desta noite carregada de sinais e de estrelas, eu me abria pela primeira vez à tenra indiferença do mundo. Por senti-lo tão parecido comigo, tão fraternal, enfim, senti que fora feliz e que ainda o era".

O mito de Sísifo foi publicado em 1942 e é, possivelmente, a obra mais fi- losófica de Camus. Agora ele problematizará filosoficamente a vida e refletirá sobre ela. Nesta obra o tema do absurdo aparece em toda sua plenitude. E será o conceito fundamental para compreender a existência humana, do homem comum, que quer ser feliz e se interroga. A lucidez será a atitude essencial deste homem. O livro começa colocando o único problema fundamental e, verdadeiramente, sério: o suicídio, isto é, julgar se a vida merece ou não ser vivida. Para o filósofo, todos os outros problemas vêm depois, como, por exemplo, se o mundo tem três dimensões, se o espírito tem nove ou doze categorias. Primeiro é preciso responder àquela pergunta. E acrescenta, com uma dose de ironia: "nunca vi ninguém morrer por causa do argumento ontológico. Galileu, que sustentava uma verdade científica importante, abjurou dela com a maior tranqüilidade assim que viu sua vida em perigo. Em certo sentido, fez bem. Essa verdade não valia o risco da fogueira. Qual deles, a Terra ou o Sol gira em redor do outro, é-nos profundamente indiferente".

Este é um livro sobre a sensibilidade absurda, não sobre uma filosofia absurda. O absurdo é o ponto de partida. O livro pretende tratar o absurdo como um mal do espírito, sem nenhuma metafísica e sem nenhuma crença. Mas o que é o homem absurdo? Ele responde: aquele que, sem o negar, nada faz pelo eterno. Para Camus, a característica do homem absurdo é não acreditar no sentido profundo das coisas. O homem absurdo é aquele que "percorre, armazena e queima os rostos calorosos ou maravilhados. O tempo caminha com ele. O homem absurdo é aquele que não se separa do tempo".

Sísifo é lúcido e, embora impotente, conhece a extensão da sua miserável condição. É essa condição que Sísifo pensa durante a sua descida

Na ultima parte do livro Camus fala do antigo mito grego de Sísifo e assim começa: "Os deuses tinham condenado Sísifo a empurrar sem descanso um rochedo até ao cume de uma montanha, de onde ela caía de novo, em conseqüência do seu peso. Tinham pensado, com alguma razão, que não há castigo mais terrível do que o trabalho inútil e sem esperança". Para Camus, Sísifo é o herói absurdo, pelas suas paixões bem como pelo seu tormento. O tormento dele é o preço que é necessário pagar pelas paixões desta terra. Camus nos diz que seu desprezo pelos deuses, o seu ódio à morte e a sua paixão pela vida valeram-lhe esse suplício indizível em que seu ser se emprega em nada terminar. "Neste, vê-se simplesmente todo o esforço de um corpo tenso, que se esforça por erguer a enorme pedra, rolá-la e ajudá-la a levar a cabo uma subida cem vezes recomeçada; vê-se o rosto crispado, a face colada à pedra, o socorro de um ombro que recebe o choque dessa massa coberta de barro, de um pé que a escora, os braços que de novo empurram, a segurança bem humana de duas mãos cheias de terra. No termo desse longo esforço, medido pelo espaço sem céu e pelo tempo sem profundidade, a fi- nalidade está atingida. Sísifo vê então a pedra resvalar em poucos instantes para esse mundo inferior de onde será preciso trazê-la de novo para os cimos. E desce outra vez à planície." É essa pausa, esse regresso que interessa a Camus, pois "um rosto que sofre tão perto das pedras já é, ele próprio, pedra!".

"Toda idéia falsa termina em sangue, mas é, sempre, o sangue alheio. Por isso, alguns de nossos fi lósofos sentem-se à vontade para dizer o que lhes dá na veneta"

Albert Camus

Sísifo sobe e desce infinitamente, sem nenhuma esperança que isso termine (onde estaria, com efeito, a sua tortura se a cada passo a esperança de conseguir o ajudasse?). Camus faz da situação de Sísifo uma analogia com a situação dos milhares de operários que devem recomeçar seu trabalho cada dia. Mas Sísifo é lúcido e, embora impotente e revoltado, conhece toda a extensão da sua miserável condição. É essa condição que Sísifo pensa durante a sua descida, pois, para Camus, a clarividência que devia fazer o seu tormento consome ao mesmo tempo também a sua vitória. Camus nos diz que não há destino que não se transcenda pelo desprezo, e acrescenta: "se a descida se faz assim, em certos dias, na dor, pode também fazer-se na alegria. Esta palavra não é demais. Ainda imagino Sísifo voltando para o seu rochedo, e a dor estava no começo. Quando as imagens da terra se apegam demais à lembrança, quando o chamamento da felicidade se torna demasiado premente, acontece que a tristeza se ergue no coração do homem: é a vitória do rochedo, é o próprio rochedo". Camus conclui afirmando que há só um mundo e que a felicidade e o absurdo são dois filhos da mesma terra, são inseparáveis. A formula da felicidade absurda está na afirmação: "acho que tudo está bem".

Camus afirmou que a peste era uma alegoria da invasão nazista à França. Fato que foi contestado duramente por Roland Barthes

Sísifo faz do destino uma questão do homem, que deve ser tratado entre homens, e ali é que Sísifo encontra sua silenciosa alegria. Seu destino pertencelhe e é um destino único e pessoal, pois não há destinos superiores. Isto faz com que Sísifo sinta-se senhor de seus dias. Camus finaliza deixando Sísifo na montanha: "deixo Sísifo no sopé da montanha! Encontramos sempre o nosso fardo. Mas Sísifo ensina a fidelidade superior que nega os deuses e levanta os rochedos. Ele também julga que tudo está bem. Esse universo enfim sem dono não lhe parece estéril nem fútil. Cada grão dessa pedra, cada estilhaço mineral dessa montanha cheia de noite, forma por si só um mundo. A própria luta para atingir os píncaros basta para encher um coração de homem. É preciso imaginar Sísifo feliz".

A peste foi publicada em 1947. Nela é relatada a história de uma cidade que é fechada porque sobre ela cai uma terrível peste. Assim, a cidade fica isolada do mundo e deve combater sozinha essa epidemia. A cidade continua sua vida no meio da praga de ratos que transmitem a peste bubônica. Os habitantes reagem de diversas maneiras, com incredulidade, com revolta, com valentia. O problema filosófico básico que Camus aborda nesta obra é a solidariedade. Agora, apesar do absurdo da existência, pode ser praticada a solidariedade e os seres humanos são capazes de se ajudar mutuamente. Se a vida é absurda, nela há o ato solidário. Camus afirmou que a peste era uma alegoria da invasão nazista à França. Fato que foi contestado duramente por Roland Barthes.

ARQUIVO PESSOAL
A peste foi publicada em 1947. Nela é relatada a história de uma cidade que é fechada porque sobre ela cai uma terrível peste. Camus afirmou que a peste era uma alegoria da invasão nazista à França

É naquele cenário que se revela a natureza humana, cheia de conflitos e nuances. E muitos nessas circunstâncias estão mais vivos que nunca e a vida torna-se para eles intensa e verdadeira. Camus nos diz que onde uns viam a abstração, outros viam a verdade. Assim, por exemplo, o padre Paneloux, desde o púlpito, pregava que essa peste era castigo de Deus: "sim, chegou a hora de refletir. Pensastes que vos bastaria visitar Deus aos domingos para ficardes com vossos dias livres. Pensastes que algumas genuflexões pagariam sufi- cientemente o vosso desleixo criminoso. Mas Deus não é fraco. Essas atenções espaçadas não bastavam à sua ternura devoradora. Ele queria ver-vos mais tempo, é a sua maneira de vos amar que é, a bem dizer, a única maneira de amar". Uma das conseqüências da peste foi que a catedral da cidade encheu de gente e continuava cheia quase todos os dias da semana, enquanto o padre insistia: "Irmãos, caístes em desgraça, irmãos, vós o merecestes". Uma das reações às palavras do padre vem de Rieux, o médico da cidade: "o que é verdade em relação aos males deste mundo é também verdade em relação à peste. Pode servir para engrandecer alguns. No entanto, quando se vê a miséria e a dor que ela traz, é preciso ser louco, cego ou covarde para se resignar à peste".

ALBERT CAMUS POR JEAN-PAUL SARTRE

Camus era uma aventura singular de nossa cultura, um movimento cujas fases e cujo termo final tratávamos de compreender. Representava neste século e contra a história, o herdeiro atual dessa longa fila de moralistas cujas obras constituem talvez o que há de mais original nas letras francesas. Seu humanismo obstinado, estreito e puro, austero e sensual, travava um combate duvidoso contra os acontecimentos em massa e disformes deste tempo. Mas, inversamente, pela teimosia de suas repulsas, reafirmava, no coração de nossa época, contra os maquiavélicos, contra o bezerro de ouro do realismo, a existência do fato moral. Era, por assim dizer, esta inquebrantável afirmação. Por pouco que se o lesse ou refletisse a respeito, chocávamos com os valores humanos que ele sustentava em seu punho fechado, pondo em julgamento o ato político.

Inclusive seu silêncio, nestes últimos anos, tinha um aspecto positivo: este cartesiano do absurdo se negava a abandonar o terreno seguro da moralidade e entrar nos incertos caminhos da prática. Nós o adivinhávamos e adivinhávamos também os conflitos que calava, pois a moral, se se a considera, exige e condena juntamente a rebelião. Qualquer coisa que fosse o que Camus tivesse podido fazer ou decidir a sua frente, nunca teria deixado de ser uma das forças principais de nosso campo cultural, nem de representar a sua maneira a história da França e de seu século.

A ordem humana segue sendo só uma desordem; é injusta e precária; nela se mata e se morre de fome; mas pelo menos a fundam, a mantêm e a combatem, os homens. Nessa ordem Camus devia viver: este homem em marcha nos punha entre interrogações, ele mesmo era uma interrogação que procurava sua resposta; vivia no meio de uma longa vida; para nós, para ele, para os homens que fazem com que a ordem reine como para os que a recusam, era importante que Camus saísse do silêncio, que decidisse, que concluísse. Raramente os caracteres de uma obra e as condições do momento histórico exigiram com tanta clareza que um escritor viva.

Para todos os que o amaram há nesta morte um absurdo insuportável. Mas, teremos que aprender a ver esta obra truncada como uma obra total. Na medida mesmo em que o humanismo de Camus contém uma atitude humana frente à morte que havia de surpreendê-lo, na medida em que sua busca orgulhosa e pura da felicidade implicava e reclamava a necessidade desumana de morrer, reconheceremos nesta obra e nesta vida, inseparáveis uma de outra, a tentativa pura e vitoriosa de um homem reconquistando cada instante de sua existência frente à sua morte futura.

Escrito um dia após a morte de Camus. Tradução: Jorge Luis Gutiérrez - Revisão: Terezinha Arco e Flexa

Assim a vida na cidade, apesar da peste, continua. E as pessoas vão revelando diferentes aspectos de sua vida. Pessoas medíocres começam a encontrar sentido no ato humano. Muitos, dentro dessa cidade, vivem uma santidade sem Deus. E este é o grande problema a ser resolvido. Trata-se de ser solidário, porém tendo como único fundamento a humanidade. Todo fundamento está nesta terra e nunca fora dela. Na peste os homens descobrem a fraternidade puramente humana. E este é o paradoxo do livro.

O homem revoltado é a obra mais polêmica de Camus. Foi publicada em 1951. Nela o absurdo da vida abre o caminho para a revolta. É uma obra escrita contra os crimes de Estado. Especialmente os do Stalinismo da União Soviética. Isto causa uma forte briga intelectual (e em alguns momentos não tão intelectual) entre Camus e Sartre, tornada pública nas páginas da revista Les Temps Modernes. Lembremos que nessa época Sartre apoiava o regime soviético e era diretor da revista. O livro começa afirmando que "há crimes de paixão e crimes de lógica. O código penal distingue um do outro, bastante comodamente, pela premeditação. Estamos na época da premeditação e do crime perfeito. Nossos criminosos não são mais aquelas crianças desarmadas que invocavam a desculpa do amor. São, ao contrario, adultos, e seu álibi é irrefutável: a Filosofia pode servir para tudo, até mesmo para transformar assassinos em juízes". Para Camus, o homem revoltado não exige a vida, mas as razões da vida, e a revolta é uma ascese, embora cega. Para ele, a "insurreição humana, em suas formas elevadas e trágicas, não é nem pode ser então um longo protesto contra a morte, uma acusação veemente a esta condição regida pela pena de morte generalizada". Assim, a revolução consiste em amar um homem que ainda não existe. E nada pode justificar os crimes feitos em nome da História.

FOTO: JAN DORNICKE
São Paulo atual, foto da região da Berrini, zona sul da capital

A História é um dos temas principais desta obra, e Camus afirma que o absoluto não é alcançado, nem muito menos criado por meio da história, e esta não pode mais ser erigida como objeto. A História não é mais que uma oportunidade, diz Camus, que deve ser tornada profícua por uma revolta vigilante, pois ,"se o tempo da história não é feito do tempo da colheita, a história não é mais que uma sombra fugaz e cruel onde o homem não encontra mais seu quinhão". Com isso, a revolta é o próprio movimento da vida e não pode ser negada sem renunciar à própria vida. Camus continua: "Compreende- se então que a revolta não pode prescindir de um estranho amor. Aqueles que não encontram descanso nem em Deus, nem na história estão condenados a viver para aqueles que, como eles, não conseguem viver: para os humilhados." A revolta deve ser amor e fecundidade ou então ela não é nada. A revolução sem honra, acredita Camus, que ele chama da revolução do cálculo, coloca o ressentimento no lugar do amor, em nome da moderação e da vida. Essa revolução que prefere o homem abstrato ao homem de carne e osso (palavras de Camus que lembram os textos do espanhol Miguel de Unamuno) nega repetidamente a existência. Assim "essa louca generosidade é a da revolta, que oferta sem hesitação sua força de amor, e recusa peremptoriamente a injustiça. Sua honra é de não calcular nada, distribuir tudo na vida presente, e aos seus irmãos vivos. Desta forma, ela é pródiga para os homens vindouros. A verdadeira generosidade em relação ao futuro consiste em dar tudo no presente."

CAMUS NA METRÓPOLE PAULISTA

"Entrevista coletiva com a imprensa pela manhã. Almoço de pé, em casa de Andrade. Ás três horas, levam-me, não sei bem por que, à penitenciária da cidade, "a mais bela do Brasil". É "bela", na verdade, como um presídio de filme americano. A não ser pelo cheiro, o cheiro horrível de homem que se impregna em todas as prisões. Grades, portas de ferro, grades, portas etc. E, de quando em quando, um letreiro: Seja bom" e sobretudo "Otimismo". Sinto vergonha diante de um ou dois detentos, aliás privilegiados, que fazem o serviço da prisão. O médico- psiquiatra, em seguida, me chateia com as classifi- cações de mentalidades perversas. E alguém me diz, ao sair, a fórmula ritual: " Aqui, você está em sua casa."

Já ia esquecendo. Na ida, passamos numa rua de prostitutas. Elas ficam por trás de portas de lâminas, grandes persianas, pelas quais se deixam vislumbrar, aliás encantadoras na sua maioria. Os preços são discutidos através das persianas pintadas de verde, vermelho, amarelo, azul-celeste. São pássaros na gaiola.

Depois, pequena escalada num arranha-céu mais baixo. São Paulo à noite. O lado conto de fadas das cidades modernas com avenidas e tetos cintilantes. Á volta, o café e as orquídeas. Mas é difícil imaginar (...) Após minha conferência, Andrade [Oswald] me informa que, no presídio- modelo, já se viram detentos suicidarem-se batendo a cabeça contra as paredes e apertando a garganta numa gaveta até a asfixia".

Diário de Viagem, de Albert Camus, da editora Record

Camus morreu em 4 de janeiro de 1960 num acidente de carro quando voltava para Paris. Assim, sua vida foi interrompida bruscamente

Camus escreve O homem revoltado alguns anos após o termino da Segunda Guerra Mundial, e um dos motivos desta obra é a superação do niilismo. "Estamos neste extremo. No fim destas trevas, é inevitável, no entanto, uma luz, que já se adivinha - basta lutar para que ela exista. Para além do niilismo, todos nós, em meio aos escombros, preparamos um renascimento. Mas poucos sabem isso." E será a revolta o caminho, porque embora ela não possa pretender tudo resolver, pode pelo menos tudo enfrentar. Camus diz então que a partir deste instante, a luz jorra sobre o próprio movimento da História. Essa revolta, no meio-dia do pensamento, recusa a divindade para compartilhar as lutas e o destino comuns dos homens. Para ele a Justiça está viva.

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FICHA TÉCNICA:
A morte feliz
Por: Albert Camus
Editora: Record - 174 páginas

Tudo isto está simbolizado na escolha de Itaca, a terra fiel, que fora tema de seus escritos de juventude. Camus propõe um pensamento audacioso e sóbrio, uma ação lúcida e generosa, que seria a atitude do homem que compreende. Para ele, nessa luz, o mundo continuara a ser nosso primeiro e último amor. E acrescenta: "nossos irmãos respiram sob o mesmo céu que nós, a justiça está viva. Nasce então a estranha alegria que nos ajuda a viver e a morrer e que, de agora em diante, não recusamos a adiar para mais tarde. Na terra dolorosa, ela é o joio inesgotável, o amargo alimento, o vento forte que vem dos mares, a antiga e a nova aurora". Nesta terra não há deuses, e ninguém pode tornar-se Deus. Aqueles que se alçam na historia como deuses são o objeto da revolta. Já está na hora, propõe Camus, de cada homem falar para os outros que não é Deus. E com estas palavras finaliza o livro: "um diz ao outro que não é Deus; aqui se encerra o romantismo. Nessa hora em que cada um de nós deve retesar o arco para competir novamente e reconquistar, na e contra a história, aquilo que já possui, a magra colheita de seus campos, o breve amor desta terra, no momento em que, finalmente, nasce um homem, é preciso renunciar à época e aos seus furores adolescentes. O arco se verga, a madeira geme. No auge da tensão, alçará vôo, em linha reta, uma flecha mais inflexível e mais livre".

Camus morreu em 4 de janeiro de 1960 num acidente de carro quando voltava para Paris. Assim, sua vida foi interrompida bruscamente. Sartre dirá que para todos os que o amaram há nesta morte um absurdo insuportável. Mas quiçá foi nesse último momento, enquanto enfrentava a morte, que se tornaram mais lúcidas as palavras que ele escrevera anos antes em um dos seus primeiros livros: "penso agora em flores, sorrisos, desejo de mulher, e compreendo que todo o meu horror de morrer está contido em meu ciúme de vida. Sinto ciúme daqueles que virão e para os quais as flores e o desejo de mulher terão todo o seu sentido de carne e de sangue. Sou invejoso porque amo demais a vida para não ser egoísta... Quero suportar minha lucidez até o fim e contemplar minha morte com toda a exuberância de meu ciúme e de meu horror".

Jorge Luis Gutiérrez é doutor em Lógica e Filosofi a da Ciência (Unicamp). Professor do Curso de Filosofi a da Universidade Mackenzie, da Faculdade São Bento e da UMESP. É autor do livro Aristóteles em Valladolid que trata sobre a Controvérsia de Valladolid (1550), onde foram discutidos com base no texto da Política, de Aristóteles, os problemas fi losófi cos e culturais que colocados pela chegada a América dos espanhóis no século XVI. Também é autor do livro "Fragmentos de Ternura, Filosofi a e Desterro", livro de contos e poemas de amor. jorgelrg@uol.com.br

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