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ALBERT CAMUS EM PORTUGUÊS PÁGINA DE DIVULGAÇÃO E ESTUDO DA OBRA DO ESCRITOR E FILÓSOFO ARGELINO ALBERT CAMUS

Marie
é a namorada de Meursault
(personagem principal da obra O Estrangeiro)



«Custei a levantar-me, pois estava cansado do dia de ontem. Enquanto fazia a barba, perguntei-me o que iria fazer e decidi tomar um banho de mar. Peguei um bonde para ir ao centro de lazer do porto. Uma vez lá mergulhei no canal. Havia muitos jovens. Na água, encontrei a Marie Cardona, uma antiga datilógrafa do escritório, que eu desejara na época. Ela também, creio eu. Mas foi embora pouco depois e não tivemos tempo. Ajudei-a a subir numa bóia e, neste movimento, rocei os seus seios. Eu estava ainda na água, quando ela já se deitara na bóia, de bruços. Virou-se para mim. Os cabelos caíam-lhe nos olhos e sorria. Ergui-me até ficar ao seu lado. O tempo estava bom, e de brincadeira, deixei cair a cabeça para trás, e encostei-na sua barriga. Não reclamou, e eu fiquei assim. Tinha o céu inteiro nos olhos e ele estava azul e dourado. Debaixo da nuca sentia o copo de Marie palpitar suavemente. Ficamos muito tempo na bóia, meio adormecidos. Quando o sol ficou forte demais, ela mergulhou e eu a segui. Alcancei-a, passei o braço em volta da sua cintura e nada-os juntos. Ela continuava a rir. No cais, enquanto nos secávamos, disse-me:
— Estou mais morena do que Você.
Perguntei-lhe se queria ir ao cinema de noite. Riu de novo e disse que estava com vontade de ver um filme de Fernandel. Depois de nos vestirmos, ficou muito surpresa de me ver com uma gravata preta, e perguntou-me se estava de luto. Disse-lhe que mamãe tinha morrido. Como quisesse saber há quanto tempo, respondi:
— Morreu ontem.
Hesitou um pouco, mas não fez nenhum comentário. Tive vontade de dizer-lhe que a culpa não era minha, mas detive-me, porque me pareceu já ter dito a mesma coisa ao meu patrão. Isto nada queria dizer. De qualquer modo, a gente sempre se sente um pouco culpado.

À noite, Marie esquecera tudo. O filme tinha momentos engraçados e outros realmente idiotas. A sua perna estava encostada na minha. Acariciava-lhe os seios. No fim da sessão, eu a beijei, mas mal. Ao sair, veio para minha casa. Quando acordei, Marie tinha ido embora. Explicara-me que precisava ir visitar uma tia. Lembrei-me de que era domingo, e isso me irritou: não gosto dos domingos. Então, vire-me na cama, busquei no travesseiro o cheiro de sal que os cabelos de Marie tinham deixado e dormi até as 10 horas.»

«Ontem foi sábado e, como havíamos combinado, encontrei-me com Marie. Desejei-a intensamente, porque usava um belo vestido de listras vermelhas e brancas e sandálias de couro. Adivinhavam-se seus seios firmes e o queimado do sol lhe dava um aspecto de flor. Pegamos um ônibus e fomos para uma praia, a alguns quilômetros de Argel, espremida entre rochedos e margeada de canas. O sol das 4 horas não estava quente demais, mas a água estava morna, com pequenas ondas longas e preguiçosas. Marie ensinou-me uma brincadeira. Ao nadar, era preciso beber na crista das ondas, acumular toda a espuma na boca, e em seguida, virar de costas para projetá-la contra o céu. Isto produzia uma espécie de renda espumante, que desaparecia no ar ou, como uma chuva morna, me caía no rosto. Mas, depois de algum tempo, sentia o ardor do sal queimar a boca. Marie chegou perto, então, e colou-se a mim na água. Colocou a boca contra a minha. A língua dela refrescava-me os lábios e rolamos por instantes nas ondas.»

«Á noite, Marie veio buscar-me e perguntou se eu queria casar com ela. Disse que tanto fazia, mas que, se ela queria, poderíamos nos casar. Quis, então, saber se eu a amava. Respondi, como aliás já respondera uma vez, que isso nada queria dizer, mas que não a amava.
— Nesse caso, por que casar-se comigo? — perguntou ela.
Expliquei que isso não tinha importância alguma e que, se ela o desejava, nos poderíamos casar. Era ela, aliás, quem o perguntava, e eu me contentava em dizer que sim. Observou, então, que o casamento era uma coisa séria.
— Não — respondi.
Ela se calou durante alguns instantes, olhando-me em silêncio. Depois, falou. Queria simplesmente saber se, partindo de outra mulher, com a qual tivesse o mesmo relacionamento, eu teria aceitado a mesma proposta.
— Naturalmente — respondi.
Perguntou então a si própria se me amava, mas eu, eu nada podia saber sobre isso. Depois de outro instante de silêncio, murmurou que eu era uma pessoa estranha, que me amava certamente por isso mesmo, mas que talvez, um dia, pelos mesmos motivos eu a decepcionaria. Como ficasse calado, nada tendo a acrescentar, tomou-me do braço sorrindo, e declarou que queria casar comigo. Respondi que sim, desde que ela quisesse.»

«No fim, lembro-me apenas de que, na rua e através de todo o espaço das salas e das tribunas, enquanto meu advogado continuava a falar, eu ouvia o ecoar da buzina do vendedor de sorvetes. Assaltaram-me as lembranças de uma vida que já não me pertencia, mas onde encontrara as mais pobres e as mais tenazes das minhas alegrias: cheiros de verão, o bairro que eu amava, um certo céu de entardecer, o riso e os vestidos de Marie. Tudo quanto eu fazia de inútil neste lugar subiu-me, então, à garganta e só tive uma pressa: acabar com isto e voltar à minha cela, para dormir. Mal ouvi o advogado clamar, para concluir, que os jurados não gostariam certamente de condenar à morte um trabalhador honesto, perdido por um minuto de desvario; e pedir as circunstâncias atenuantes para um crime cujo remorso eterno, o mais seguro dos castigos, eu já arrastava comigo.»














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